O primeiro aspecto que se nota ao ler a versão brasileira do pôster de ‘O Clã’ (2015) é a frase que diz “Dos produtores de ‘Relatos Selvagens’”. Para quem se surpreendeu com a qualidade acima da média do candidato argentino ao Oscar 2014, fica com duas expectativas ao ler essa informação. Primeiro o receio de que ‘El Clã’ vai repetir a fórmula do filme citado no cartaz, de forma confortável para tentar repetir o sucesso certo. Em seguida a esperança, de que ele repita a qualidade de produção da parceria Argentina + Espanha, prestigiada pela presença de Pedro Almodóvar no antecessor e que caso ele não tenha medo de se arriscar, poderia criar mais uma obra premiada. E o longa-metragem de 2015 não decepciona, prova disso é o outro enunciado utilizado pelo marketing, o que diz que o filme foi agraciado com o Leão de Prata, prêmio de Melhor Direção para Pablo Trapero no Festival de Veneza.Trapero já impressionava em seu “road movie” ‘Família Rodante’ (2003) um dos filmes da ótima safra produzida pela Argentina nos últimos anos, tanto que evidentemente inspirou o americano ‘Pequena Miss Sunshine’ (2006). Ele tem no currículo outros grandes trabalhos como ‘Elefante Branco’ (2012) e ‘Abutres’ (2010), onde dirigiu outro expoente do cinema argentino, o ator Ricardo Darín, e ‘Leonera’ (2008), que tem Rodrigo Santoro no elenco. Agora neste trabalho de 2015 ele teve a oportunidade de explorar todo o seu talento para compor histórias moralmente cheias de camadas, com uma direção que favorece a reflexão do espectador.
O Clã é inspirado no caso real da família de sequestradores que chocou a Argentina na década de 80. Enquanto os argentinos ainda cicatrizavam as feridas da brutal ditadura, a família Puccio mantinha uma organização que sequestrava e matava dando continuidade as atrocidades militares e o sistema de acobertamento que ainda não havia sido extinto. A revelação de seus crimes foi um atestado trágico da herança maldita de um período que toda a América do Sul ainda hoje luta para superar.
O novo longa-metragem de Trapero junta de forma mais crítica e radical dois temas dos quais já havia explorado em seus longas, em ‘A família rodante’ fala sobre família, como ela pode ser disfuncional e seus conflitos; e em ‘Abutres’ o sistema judicial argentino suas falhas e sua corrupção. Pois, em seu novo trabalho ele faz um retrato árido e cético sobre o ser humano, os conflitos familiares onde o pai distorce a moral do certo e errado, e como isso sufoca e transforma seus filhos em cúmplices e vítimas ao mesmo tempo. Quanto à justiça, vemos como Puccio, um torturador,foi fruto da ditadura militar argentina e teve sua proteção durante e após seu término em 1983, o que incentivou a continuar com seus crimes e só parar ao ser preso no ano de 1985.
O destaque do elenco certamente é do ator Guillermo Francella, cujo trabalho anterior mais expressivo foi em ‘O Segredo do Seus Olhos’ (2009) e protagonista da ótima comédia dramática ‘Coração de leão: o amor não tem tamanho’ (2013). Filme este em que teve a difícil missão de interpretar um anão, mesmo não sendo portador de nanismo, sem parecer artificial. Nos dois filmes citados ele já esbanjava carisma, mas interpretando o patriarca dos Puccio ele é literalmente bárbaro. Seu semblante é impassível durante o filme todo e nunca temos um vislumbre do que ele está pensando e sentindo, apenas imaginamos que não é boa coisa. Ele mantém o controle de tudo a sua volta e no único momento em que o perde é que mostra quem realmente é. Soma-se à sua atuação, a de Peter Lanzani, ator de seriados de televisão, que interpreta o filho mais velho Alejandro e que contrasta sua ingenuidade e insegurança típica da juventude, com a experiência e dissimulação do pai.
A linguagem narrativa utilizada pelo diretor é diferenciada se compararmos ao como este tipo de tema costuma ser abordado em outros filmes. Pois, em outros, geralmente é pelos olhos de uma vítima, parente ou policial que o espectador acompanha, até para que exista uma identificação com algum personagem. Dificilmente alguém vai simpatizar com algum personagem deste longa-metragem, mas isso não os torna menos sedutores. O ponto de vista é sempre dos criminosos, geralmente do primogênito, que segue as ordens do pai, mas nunca está confortável e percebe aos poucos o quanto está sendo manipulado.
Arquímedes é o “poderoso chefão” do bando e sempre escolhe suas vítimas entre conhecidos, até mesmo vizinhos e colegas, emergentes da classe média alta no recente processo de democratização do país. Isso evidencia uma espécie de moral vingativa em seus atos, quase como se o fizesse por punição aos inimigos do antigo regime. Fica ainda mais evidente quando notamos que o dinheiro adquirido com os pagamentos dos resgates milionários não é utilizado para um estilo de vida de ostentação. É uma forma praticamente tão inventiva de narrar quanto a de ‘O Segredo de Seus Olhos’, quase que dando uma continuidade a forma melancólica de contar a recente e violenta história da Argentina.
E o roteiro constrói o enredo de forma a surpreender, mesmo que seja baseado em uma história real e que no início do filme já nos mostre parte do desfecho. A rotina da família nos transporta para dentro do lar dos Puccio, demonstrando o quão comum e corriqueiro eles parecem. Eles rezam antes das refeições, lavam a calçada, tem empregos e empreendimentos simples, a mãe trabalha como professora, os filhos vão à escola e jogos esportivos. Essa atmosfera familiar entra em choque quando descobrimos que as vítimas sequestradas têm seu cativeiro dentro da própria casa. O fato de os cativos fazerem barulhos incomodativos o tempo todo sem serem devidamente amordaçados e silenciados, pode parecer um furo no roteiro, mas serve para ilustrar o quão desconfortável é a situação, ainda que a família toda seja conivente;
Não deixa de ser criativa e até corajosa, a forma como a produção técnica utiliza alguns recursos, que lembram os filmes de Scorsese e Tarantino. A trilha sonora está repleta de músicas do rock dos anos 70, que tocam enquanto ocorrem cenas totalmente reprováveis pelo seu conteúdo violento. Isso nos causa sentimentos confusos, pois ao mesmo tempo que ficamos tensos pelo que ocorre em tela, nos empolgamos com a música executada. E Pablo Trapero dirige cada cena com a mesma calma fria que o patriarca sociopata age em seus sequestros, a câmera está sempre procurando um vestígio de remorso nos olhos azuis e cabelos grisalhos, mas nunca encontra – por mais tempo que nos faça encará-lo. E é esse tipo de recurso que eleva a qualidade do longa a um alto nível e o fez cair no gosto do público, tanto que já é o filme mais assistido na história dos cinemas argentinos.
Claro que o sucesso, igualmente, se explica pela popularidade do fato histórico-policial, mas o filme tem agradado público e crítica pelos festivais e salas de cinema em que é exibido por outros países, também. Além da premiação em Veneza recebeu uma Menção honrosa no TIFF (Festival de Cinema de Toronto). Candidato argentino ao Oscar é forte concorrente para o brasileiro ‘Que Horas Ela Volta?’, podendo gerar um bom clássico Brasil vs. Argentina, também no cinema e no “Academy Awards” de 2016.
Trailer do Filme: