John Luther (Idris Elba) é autodestrutivo. Pode parecer mais um clichê de personagens onde invariavelmente o protagonista é egocêntrico, difícil, e tem transtornos obsessivos; mas a grande sacada do roteirista e produtor da série da BBC, Neil Cross está em sutis subversões ao gênero policial. Aqui nosso “herói” é profundamente altruísta. Possui uma ética inabalável a resolução de casos que envolvem crimes violentos e suas vítimas em série.
Esta mesma firmeza de caráter o torna igualmente violento, embora tenha aversão a armas e resolva quase que sempre seus casos com inteligência e manipulação interrogativa. Mesmo assim seu casamento de 18 anos se acaba, sua fama no departamento em que é inspetor-chefe o faz pessoa não grata entre seus colegas, pois não abdica de atalhos e furos legais para chegar ao fim de uma investigação, ou prisão de um assassino.
A série que teve estreia em 2010 se inicia com a perseguição de um torturador que a beira de uma queda em uma fábrica, confessa a Luther a localização de sua presa, mas o policial não o segura, sendo afastado por meses até judicialmente se decidir o destino de sua carreira. O ótimo e sagaz roteiro alinha o complexo personagem, sua culpa e os crimes dos “psicopatas do dia” com maestria para inverter a ordem do discurso moral. Até que ponto o sistema legal e suas ferramentas são eficazes, e onde nosso personagem cruza a linha entre a lei e a justiça solitária?
A classuda música de abertura de ‘Massive Attack’ deu o clima que talvez tenha gerado os comentários sobre ator ser o perfeito James Bond da década atual, além de clássicos de ‘Nina Simone’ e bandas indie como ‘Suede’ em sua trilha sonora, aliás muito boa.
Os criminosos variam entre os gênios com tendências a crimes artísticos, nerds jogadores, homens comuns, justiceiros e compulsivos sexuais.
A produção que deu o SAG (Screen Actor’s Guild) de Melhor Ator para Idris Elba é moderna e veloz em sua ambientação e montagem da Londres atual, lembrando outra série de calibre do canal inglês, ‘Sherlock’. Em muitos detalhes de suas ferramentas narrativas nos remete a americana ‘Prison Break’, onde cada episódio corrompe o anterior, mantendo o expectador atônito, como no próprio piloto, onde uma estranha relação se constrói entre Luther e uma psicopata (Ruth Wilson, linda e genial), ambos opostos da mesma moeda. Justamente o que os faz diferentes, os une; um pela indiferença a vida humana, outro por excesso de empatia a ela, mesmo que custe a sua própria; mas ambos cruzam facilmente as regras sociais pelo que acreditam.
Entre as três temporadas exibidas, realmente o desenvolvimento dos personagens que rodeiam John e sua corrosão ética os tornam vítimas de um criminoso passivo, pois sua determinação leva as pessoas que ama ou convive para lugares e situações de onde não podem escapar tornando cada história uma montanha-russa imprevisível.
Apesar de alguns crimes e relacionamentos beirarem o absurdo inverossímil, Neil Cross consegue vender seu peixe usando o carisma de um grande ator esnobado no Oscar 2016 pelo belíssimo e brutal ‘Beasts of No Nation’. Mas não se enganem, ‘Luther’ é entretenimento, mas de alto nível. Vale a pena.