A arte de documentar fatos memoráveis ou simplesmente conhecidos é algo que depende de muita habilidade e atenção, às vezes até paixão por aquele determinado trabalho, para se tornar algo bem feito. Michael Moore, ao ganhar o Oscar de Melhor Documentário de 2002 pelo filme ‘Tiros em Columbine’, disse em seu discurso junto com os demais diretores indicados ao mesmo prêmio que os documentaristas vivem e gostam da “não-ficção” por apreciar a realidade dos fatos. É claro que o discurso de Moore era uma crítica ao governo do então presidente George W. Bush em razão da Guerra do Iraque, mas a defesa em torno dos documentários era sim uma resposta plausível em relação ao seu trabalho como documentarista e, de fato, é essa a principal missão do documentário: levar a verdade para o mundo, mesmo que o conteúdo transmitido seja delicado, polêmico e revoltante. Este é o aspecto marcante de ‘The Hunting Ground’.
Dirigido por Kirby Dick, o mesmo diretor do documentário ‘A Guerra Invisível’, o filme tem o argumento de mostrar a realidade das vítimas de abuso sexual cometido dentro ou nos arredores das universidades norte-americanas. Através de depoimentos das chamadas “sobreviventes”, a missão do documentário é tornar pública a denúncia feita contra universidades mundialmente famosas como Harvard, Florida, Califórnia, Carolina do Sul e muitas outras. A forma com que as denúncias são tratadas pelos membros das universidades impressiona a todos que assistem a esta produção chocante.
Não é de hoje que o valor material se ergue sobre qualquer causa humanitária e a situação degradante com que as universidades lidaram com as denúncias das vítimas de abuso sexual não é exceção. As acusações, muitas vezes, recaiam sobre alunos em destaque e atletas renomados como o jogador de futebol americano, Jameis Winston. Uma vez que a reputação das universidades está ameaçada e os recursos oriundos de doações milionárias dos antigos estudantes e de ricos empresários e políticos podem ser afetados, praticamente todos os conselheiros e dirigentes das referidas universidades acabaram ignorando as polêmicas denúncias de estupro. Para os representantes dessas escolas mundialmente famosas, tais denúncias eram e ainda são o menor dos seus problemas.
Diante de vários depoimentos das vítimas e parentes das mesmas, das quais algumas até se tornaram suicidas, o filme acaba não apenas mostrando a rotina e a batalha de quem quer chamar a atenção das autoridades públicas governamentais, diante de milhares de casos de abuso sexual cometidos nas citadas universidades. Com argumento bastante impactante e convincente até certo ponto, a história em si, obviamente revolta e até emociona, principalmente para pais que querem um bom futuro para suas filhas.
Com o reforço de artistas vítimas de abuso sexual, como a compositora Diane Warren e da cantora Lady Gaga que compuseram a música tema do filme: ‘till happens to you’, indicada ao Oscar de 2016 na categoria Melhor Canção, onde a referida cantora causou grande comoção ao ser anunciada na premiação pelo vice – presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, bem como ao cantar junto às “sobreviventes” que aparecem no filme. A citada canção é suave de se ouvir, mas com conteúdo triste, o qual condiz com a temática do filme em questão.
Diante de todos os fatores marcantes e relevantes que fazem de ‘The Hunting Ground’ uma produção grandiosa e ousada, o filme também deixa espaço para críticas negativas.
Assim como todo documentário investigativo deve ser, ‘The Hunting Ground’ se mostra bastante detalhista com relação às denúncias feitas pelas “sobreviventes” de estupro, bem como em razão da repercussão que a matéria teve até chegar ao Congresso Nacional e à Casa Branca, onde o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, se pronunciou diante da vergonhosa realidade que afetara o sistema educacional do país. Entretanto, o filme falhou em não se mostrar imparcial ao frisar as denúncias de abuso. As opiniões controversas e de repudio dos estudantes que defendiam as universidades denunciadas se mostraram de forma muito singela e quase que não notável. Não se buscou levantar argumentos realmente convincentes daqueles que eram contra as manifestações contra o abuso sexual. Alguns se mostraram afetados diante do escândalo envolvendo seus ídolos, já outros se mostraram preocupados diante das denúncias falsas e este era o ponto relevante que o filme deveria ter tratado, mesmo que o fizesse se prolongar em razão do tempo de duração.
Por mais que as denúncias graves representassem, em sua totalidade, fatos verdadeiros, os realizadores procuraram não afetar a produção, procurando falhas no movimento das “sobreviventes” como as denúncias falsas que também atrapalharam a vida de muita gente. A outra falha foi não procurar a opinião científica de médicos especialistas que poderiam ter comentado mais sobre que tipo de drogas eram utilizadas para dopar as mulheres vítimas de abuso, bem como quais efeitos e sequelas tais produtos são capazes de gerar nas pessoas. Se tais pontos tivessem sido observados e trabalhados em razão do filme, talvez a recepção deste tivesse sido bem maior em relação ao público e à crítica. Afinal, um documentário também é uma tese dissertativa, onde se tem que apresentar todos os seus argumentos, sejam eles positivos ou negativos em razão daquela matéria a ser documentada.
De um modo geral, o filme é incompleto, mas nada apelativo. É convincente e, apesar da parcialidade, não é nada sensacionalista. É comovente, direto e honesto. Acima de tudo, é revolucionário e reflexivo. Com toda a certeza, o movimento das vítimas de abuso sexual, defendido no filme, influenciará, através deste, muitos outros movimentos semelhantes em todo o mundo.