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O CinePe segue a todo vapor na capital pernambucana, na noite da última segunda mais oito obras foram exibidas, entre curtas da mostra de Pernambuco e da competição nacional, além do longa Henfil, de Angela Zoé, numa seleção que vai demonstrando maturidade a cada dia. Nesse dia quatro, começa a se desenhar curtas que podem ser angariados no festival, mas ainda mais importante que isso, esses filmes revelam profundas reflexões no próprio centro de sua feitura, o que fazem deles obras extremamente relevantes, obras cinematográficas conscientes de sua potência.
Os curtas: apropriando-se de formatos hegemônico
É muito curioso como muitas vezes uma seleção e uma programação colocam dois curtas tão diferentes numa mesma noite e apesar de suas diferenças, percebe-se apenas as suas conexões e seus diálogos. É justamente isso que acontece com dois filmes que mais impressionam na mostra competitiva, “Universo Preto Paralelo”, de Rubens Passaro, e “Peripatético”, de Jéssica Queiroz, dois realizadores negros de São Paulo que abordam de formas diferentes o racismo institucionalizado, cada um a sua maneira, cada um beirando o brilhantismo do registro.
Mais do que um tema em comum realizado por quem sente de perto as consequências desse fato, ambos os curtas-metragens utilizam-se de ferramentas de representação hegemônicas, que ajuda a constituir esse sentimento de racismo constante, para fazer sua própria crítica ao sistema. É como se os realizadores tivessem consciência de fazer com que o tiro saia pela culatra por uma arma já extremamente utilizada, mais do que isso, mostra como se pode aprender a manusear essas armas a questões libertárias.
“Universo Preto Paralelo”, através de imagens e sons de arquivo, faz um paralelo da escravidão com o período da ditadura militar no Brasil. Passagens históricas traumatizantes que partem da retirada da humanidade através da violência, no centro das duas a população negra. Rubens Passaro utiliza na trilha sonora depoimentos da comissão da verdade, enquanto se vê retratos do período escravagista, de forma que aquilo que se ouve modifica por completo as imagens na tela. Há uma reinterpretação de retratos que já fazem parte de um imaginário visual do país.
Rubens Passaro, dessa forma, apropria-se por completo do sistema imagético proposto pelo próprio branco, na construção do país. O realizador se utiliza do retrato hegemônico para mostrar o quanto é vazio aquele simulacro pintado no período colonial, no império e que voltou a ser escancarado (uma vez que não acabou e ainda segue presente) na ditadura militar. É como se “Universo Preto Paralelo” destituísse um lugar de paz racial, que coroa o branco, através de sua própria produção visual. Imagem também é discurso, e uma análise sintática dela pode revelar mais mentiras do que verdades e “Universo Preto Paralelo” escancara essa versão extraoficial, utilizando essas imagens hegemônicas.
De forma um pouco mais sutil, Jessica Queiroz faz o mesmo em “Peripatético”, filme que já ganhou grande repercussão e que textos relevantes possam ser mais esclarecedores que este. O curta é narrado pela protagonista Simone, uma jovem negra da periferia de São Paulo buscando seu primeiro emprego nos conturbados dias de maio de 2006, em meio aos ataques do PCC na capital paulista. Ela conta a história de outros dois jovens, uma amiga preparando-se para o vestibular e outro que ainda pretende ficar no esquema videogame e desenho animado.
Queiroz rechaça o clichê do cinema político: a estética crua, a violência escancara na tela, a câmera na mão que se confunde com urgência, estes artifícios são substituídos por um filme pop, colorido, musical e divertido. A periferia é colorida, é vibrante, sem deixar de abordar as suas problemáticas. Os pensamentos de Simone são ilustrados por efeitos visuais que grafitam as paredes de suas ruas, os diálogos se refletem em metáforas presentes bem marcadas, assim como uma câmera que chama atenção justamente para uma construção cênica afetiva, que não faz de seus personagens meros objetos de estudos, mas sim seres complexos, no limite de uma juventude que vive com medo de ser perdida – seja por não passar no vestibular, por não conseguir passar em um emprego, ou por ser mais um número nas estatísticas de mortes feitas por policiais na periferia.
Com esse apelo popular, Jessica Queiroz faz um filme onde sua forma quebra com uma série de clichês presentes nesse retrato periférico, o que torna seu filme diferenciado num amplo cenário, é dessa diferenciação que seu discurso surge com uma força ainda maior. A diretora usa as ferramentas pops que comumente colocam o negro como um simples empregado na televisão, a fim de dar força para aquela narrativa comum na periferia, como se ela dissesse “olha como também podemos nos representar” e “olha como somos”. Jessica Queiroz joga com as regras do jogo, num sistema agradável a um estilo de filme comercial, para no seu final quebrar todas as regras, todos os cenários, literalmente falando, e deixar explicitamente o seu recado. Um basta que passa pelo recado de que negros periféricos também podem usar o cinema da forma que eles bem entenderem, e o pop é uma dessas ferramentas.
O Personagem e o filme:
O longa da noite foi “Henfil”, de Angela Zoé, documentário que foca na vida de seu protagonista título, o inquieto cartunista que ficou famoso por suas charges no Pasquim, mas que também teve relevante trabalhos como jornalista e escritor, figura icônica da cultura brasileiro durante a época da ditadura militar. O filme logo de cara expõe seu objetivo, trazer para a atualidade a figura de Henfil, numa forma de manutenção e preservação do pensamento de nomes que nunca poderão ser esquecidos pelo povo brasileiro. Angela Zoé parte quase de uma obrigação com a cultura recente do país.
Dessa forma, o documentário arma uma ferramenta, certo dispositivo para que essa história seja recontada. Uma série de jovens animadores e ilustradores são convidados para fazerem uma pequena animação com os personagens criados pelo cartunista. Assim, a câmera filma os garotos pesquisando e aprendendo sobre o protagonista do filme, como se aquele aprendizado passasse para o público também. Naquelas salas de encontros surgem pessoas próximas a Henfil, como Ziraldo, Jaguar e tantos outros, assim o filme também foge do jeito que pode das famigeradas entrevistas, partindo para este recurso apenas quando realmente necessário. Fator que dá uma dinâmica mais interessante a um documentário bastante informativo.
Até por esses encontros focarem nos personagens do cartunista, o retrato feito ali parte muito mais para o seu lado profissional, fazendo uma cronologia de sua carreira e importância. Todavia há um elemento que dá uma dimensão maior para aquele protagonista, imagens de arquivos de filmes caseiros realizados pelo próprio Henfil, algo que desperta um real interesse por aquela figura, materializando aquilo que só se ouve falar.
Talvez o fator surpresa dessas imagens, que nem a cineasta estava esperando, seja o ponto mais forte do filme, mas também algo que reflete certo descompasso naquele documentário. A persona de Henfil é extremamente interessante, ocupando a tela de forma sem igual, há um desejo de ver mais daquele homem falando, compartilhando com o público seus pensamentos de forma direta, sem a mediação da memória alheia. “Henfil” é engraçado, irônico e inteligente, apenas com sua fala entende-se todo seu processo criativo e as coisas que queria fazer. Dessa forma, o filme tem uma queda quando esse protagonista não está em cena, como se fosse mostrado apenas apêndices textuais, quando o conteúdo está de verdade naquele ser.
É verdade que muito das imagens que foram gravadas de Henfil se perderam com o tempo, e pensar que ele é uma figura recente, só demonstra como a memória de um país com seus pensadores é extremamente frágil, o que torna esse resgate fílmico ainda mais relevante. “Henfil” tem um personagem incrível que pouco aparece, o que faz a obra e o público sentirem demais a sua falta.
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