Alguns poderiam dizer que “Bela Vingança” fala de um momento atual, com movimentos como o “MeToo”, de Hollywood, ou o debate mais recente sobre a cultura do estupro, e de fato fala. “Bela Vingança” também é atual, mas é, acima de tudo, atemporal.
Emerald Fennell escreveu o roteiro e fez sua estreia como diretora de longa metragem nesse suspense provocativo e já deixou bem claro a que veio. Com 5 indicações ao Oscar e uma vitória na categoria de Melhor Roteiro Original, a história de Cassie expõe maus enraizados na nossa sociedade e que precisam, urgentemente, serem reparados.
Cassie é uma jovem mulher que desistiu da faculdade de medicina há alguns anos e agora vive uma vida sem muita perspectiva. Durante o dia ela trabalha (mal) no café de uma amiga e à noite vai para boates e bares onde finge estar bêbada até que algum homem apareça com as intenções erradas e tente se aproveitar da situação, e é aí que Cassie revela que está sóbria com o intuito de que o susto ensine uma lição aos predadores.
A construção do suspense durante toda a história é um dos aspectos mais bem trabalhados do filme. A todo momento Cassie nos deixa em dúvida em relação à sua sanidade e seu compasso moral em situações que nos deixam em estado de desconforto, mas esse é o seu propósito. O filme é provocativo e desafiador e Fennell consegue esse resultado com uma exposição crua da sociedade e de como é ser uma mulher nesse mundo.
O motivo de Cassie ter mudado seu rumo e viver essa vida dupla é um trauma do passado que envolvia sua melhor amiga, não mais presente. Cassie voltou a morar com os pais, só tem como amiga sua chefe e leva uma vida isolada, até que reencontra Ryan (Bo Burnham), um ex-colega de faculdade que agora é um cirurgião pediatra e com quem engata um romance. Quando Ryan menciona um outro ex-colega, seus traumas passados voltam com força total e Cassie começa, então, seu processo de vingança. Cassie revisita o passado para se vingar de pessoas que foram peças-chaves nos acontecimentos que levaram à ruína de sua melhor amiga de infância e, consequentemente, à sua também. Ela vai atrás de todos aqueles que ela acredita terem sua parcela de culpa no episódio, seja por suas ações ou omissões.
De todos os absurdos que vemos, e que podemos facilmente reconhecer em quase todos os ambientes em que vivemos, o mais chocante talvez seja como as pessoas se esqueceram, ou preferiram esquecer, dos eventos traumáticos que acabaram com uma vida, simplesmente por tudo ser tão normalizado. Uma das coisas pela qual Cassie mais anseia é o reconhecimento dos erros, um pedido de desculpa ou ao menos um sinal de arrependimento, mas quase sempre encontra indiferença, escusas e até mesmo acusações.
“Bela Vingança” expõe uma realidade difícil de engolir para quem nunca teve que enfrentá-la, mas tão comum para a grande maioria das mulheres que acaba se tornando quase “normal”. Um dos pontos mais abordados pela trama é o tratamento desigual dado aos homens e mulheres quando expostos a situações adversas. Se uma mulher acusa um homem de abuso sexual, a ele é dado o benefício da dúvida, a justificativa da pouca idade, enquanto a mulher é questionada desde o começo, seja pela sua roupa, seu comportamento, sua sobriedade ou até mesmo sobre seu valor. Uma fala específica do filme resume muito bem toda essa questão: num diálogo sobre estupro, o homem diz que ser acusado desse crime é o maior medo de qualquer homem e Cassie o questiona “Consegue imaginar qual é o maior medo de uma mulher?”.
Fennell lida com a cultura do estupro e o machismo com um humor ácido e irreverente, sem rodeios e sem “passar pano” para ninguém – ninguém mesmo. O roteiro inteligente consegue te surpreender todas as vezes que parece estar indo em direção de um desfecho mais óbvio ou clichê. Além das relações externas de Cassie, é incrível também o cuidado com a relação interna da personagem, todo seu processo de luto, vingança e aceitação e como sua vida é dedicada totalmente às consequências que o episódio com sua melhor amiga teve na sua vida.
“Bela Vingança” faz refletir não só sobre nossas ações, mas sobre todas as vezes em que vemos abusos e excessos sendo cometidos e ficamos inertes, causando tantos danos quanto os abusadores.