Alguns dias antes de seu lançamento, “Eternos” chamou atenção por ser o filme do Universo Cinematográfico da Marvel com a pior avaliação no Rotten Tomatoes. Ainda que com a participação de atores renomados, uma diretora ganhadora do Oscar – Chloé Zhao – e um orçamento grandioso, muito se reclamou sobre a trama do filme, seus personagens, sua busca por representatividade e, mais do que tudo, das diferenças entre a obra e os demais filmes do universo compartilhado. Mas será que o filme é essa bomba mesmo que tanto falam?
“Eternos” é, sim, um ponto fora da curva que compõe os filmes da Marvel. Isso, entretanto, nem sempre significa algo ruim. Não só em seu tom, que é muito menos cômico e caricato do que os demais filmes, a obra também inova em sua trama, que se destaca indo muito além do que foi proposto até então.
Servindo quase como uma espécie de Gênesis e, ao mesmo tempo, Apocalipse para o Universo Marvel, a história acompanha um grupo de seres super poderosos enviados para a Terra milhares de anos atrás, nos primórdios da humanidade. Denominados Eternos por não envelhecerem, a missão deste grupo é acabar com os Deviantes, monstros que buscam dizimar a vida do planeta, e ajudar os povos terráqueos a evoluir. Nos dias atuais, após os Vingadores terem derrotado Thanos e salvado metade da vida no universo, os Eternos, que viviam infiltrados entre os humanos, são reunidos para sua última missão.
Com dez personagens que compõem o grupo de heróis, cada um possui sua particularidade que vai muito além de seus superpoderes, alcançando nuances individuais que torna toda a história mais profunda e complexa. Com milhares de anos de existência – e com alguns espalhados ao redor do mundo –, cada membro dos Eternos possui uma personalidade distinta, com ideais e visões de mundo que ora se contrastam e ora condizem com as dos demais.
Este é, sem dúvida, um dos pontos mais promissores do longa metragem. Embora muitos críticos tenham alegado que os personagens não são aprofundados o suficiente, ficam claras as particularidades de cada um, tornando toda a experiência ainda mais rica. Surge, portanto, o questionamento: seria realmente necessário um aprofundamento complexo e demorado para cada um dos dez personagens? Neste ano tivemos o lançamento do aclamado “O Esquadrão Suicida” que, também sendo um filme de equipe, aprofunda seus personagens muito menos do que a Marvel fez com os Eternos, não deixando de ser um ótimo filme. Até porque, com dez personagens, seria loucura imaginar um longa-metragem que tentasse se aprofundar completamente em cada um deles.
“Eternos” deixa claro quem são seus personagens principais na dinâmica de equipe, onde Sersi, Ikaris e Sprite recebem maior tempo de tela e um desenvolvimento muito mais completo do que os demais. Os outros personagens, entretanto, não encantam menos. Destaca-se Kingo, interpretado por Kumail Nanjiani, que rouba as cenas como um dos melhores alívios cômicos dos filmes da Marvel, perdendo apenas para Luis, de “Homem-Formiga”. Ainda que simples, toda a trama que envolve o personagem é extremamente divertida e traz o humor que a obra merece, ainda que não tão presente quanto nos demais longas-metragens. De forma cômica e satírica, Kingo se tornou um astro de Bollywood com um sucesso que permeia até os dias de hoje, enganando seu público geração após geração.
A relação dos personagens uns com os outros também é muito bem explorada, onde há aqueles que se admiram, outros que se invejam e alguns que retém sentimentos platônicos entre si. Indo um pouco além do núcleo dos três protagonistas já citados, a relação entre Thena (Angelina Jolie) e Gilgamesh (Don Lee) é a que mais encanta durante o longa, onde fica muito claro o amor que ambos sentem um pelo outro, mas o filme se permite deixar ambíguo se, para ambos, é um amor fraterno ou romântico. A atuação de Jolie, entretanto, deixa um pouco a desejar, com uma personagem que consegue demonstrar ainda menos emoção do que Kristen Stwart o fez na saga Crepúsculo.
Destaca-se também a relação entre Druig (Barry Keoghan) e Makkari (Lauren Ridloff), que possuem um amor tão dócil e sutil um pelo outro que certamente conquistará a atenção e a torcida dos espectadores. Por último, o personagem Phastos (Brian Tyree Henry) também conquista seu espaço no coração do público, não só sendo o primeiro personagem abertamente gay da franquia de filmes, mas também por sua relação de amor e ódio, admiração e temor pela humanidade.
A beleza do filme, entretanto, é seu ponto mais alto. Não só a beleza estética e visual com a qual Zhao nos presenteia, mas também toda a beleza da trama, que traz consigo uma reflexão sobre o sentido da vida e da humanidade; as trajetórias, desejos e capacidades mais profundas de uma raça que era capaz de gerar, ao mesmo tempo, beleza e destruição. Permite, assim, que o espectador viaje por diversos momentos da história humana que tanto conhecemos – e alguns nem tanto – para ver o melhor e o pior de nós mesmos.
Enquanto nos encanta com uma fotografia belíssima, “Eternos” nos permite ponderar sobre a natureza humana, conquistando do público uma mistura quase perfeita entre contemplação e reflexão. Dessa forma, vê-se que é, sem dúvidas, o filme mais abertamente artístico da Marvel até então.
Por fim, o novo filme deste universo cinematográfico, ainda que talvez não seja o melhor de toda a franquia, abre infinitas possibilidades explorando o cosmos e a mitologia deste universo bem mais do que “Guardiões da Galáxia” conseguiu. “Eternos” se permite ousar não só em sua estrutura, que é levemente fragmentada e traz uma gama de novos personagens para apresentar ao mesmo tempo, mas também em toda a sua proposta, se apresentando como uma obra não só belíssima, mas dinâmica, encantadora e, mais do que tudo, fora da caixa. Talvez o filme, de fato, não agrade a todos os espectadores que já estão acostumados com a fórmula Marvel, mas com toda a certeza merece o reconhecimento pelo que ousou fazer com tanta determinação e criatividade: ir além.