Em menos de um mês, o cinema francês ganha holofotes com dois filmes provocadores com um assunto em comum. Se Graças a Deus (2019) conseguiu, com sua narrativa, criticar a suja atualidade envolvendo o crime de abuso infantil – que ganhou ainda mais força com a polêmica e confusa mudança no Código Penal – Inocência Roubada consegue provocar de uma maneira ainda mais cirúrgica, mas não tão afrontosa quanto o longa de Ozon – muito pelo fato do mesmo envolver um órgão tão admirado quanto a Igreja Católica.

No entanto, Andréa Bescond e Eric Métayer são diretos em sua mensagem, além de conseguirem realizá-la de maneira criativa e dinâmica. Como retratado no texto do filme de Ozon, há maneiras padronizadas de se tratar uma narrativa quando o assunto é pedofilia, envolvendo a jornada de descoberta e o drama das vítimas. Inocência Roubada consegue trabalhar os dois de maneira orgânica e bem encaixada na proposta ativa na mistura entre duas artes: o cinema e o teatro. 

Por ser uma adaptação de espetáculo teatral (e da vida real da cineasta) Andréa e Métayer buscam um equilíbrio entre as duas linguagens, com misturas de cenário e diálogos orgânicos entre seus personagens. Ainda que em muitas tentativas, a mistura não funcione, aqui a conversa entre as duas se mantém inseridas na proposta.

O trabalho com memórias abre a oportunidade para uma liberdade estrutural muito maior e é justamente nesse ponto que momentos mais fantásticos como voar (representação do sentimento) e a própria mistura de cenários, funcionam perfeitamente, já que embarcar em uma memória é como reviver o acontecimento. O funcionamento se deve também pelo humor ácido provocado no texto (também escrito pelos dois citados), mas, principalmente, pela atuação de Andréa.

A cineasta francesa, que faz sua estreia como profissional, atinge um amadurecimento significativo com sua personagem e entrega o peso necessário à sua difícil jornada. Muito pelo fato da própria atriz reviver acontecimentos verdadeiros, ainda que adaptados. 

Jornada essa muito bem explorada pela direção, tanto que a versão criança da protagonista (Cyrille Mairesse) nunca se encontra no mesmo plano que o abusador (aqui, interpretado por Pierre Deladonchamps), demonstrando o cuidado dos cineastas em tratar de um delicado tema. Ainda que haja o humor como um toque de leveza, o longa é pesado quando precisa ser, e mantém um sentimento amargo em diversas cenas. O tratamento em questão não é o melhor escolhido diante outras produções do tema, mas consegue manter o peso necessário para o indefensável ato.

Nesse ponto, Deladonchamps surpreende com seu trabalho de atuação, transmitindo a malícia envolta da atitude de seu personagem, além de ser seguro nos momentos mais difíceis do longa e que exigem uma entrega mais complexa. Apesar de dois trabalhos de interpretação dignos de elogio, há um destaque específico à presença de Karin Viard. Apesar de sua participação narrativa ter um objetivo clichê, é necessária também para uma reflexão social sobre abuso e Karin tira do espectador o sentimento objetificado pela construção da jornada. Nisso, o roteiro realiza sua função como alerta de maneira concisa. 

A conclusão do longa demonstra essa força. Ainda que não haja a grande cena esperada do enfrentamento, o roteiro expõe que não há necessidade. E, ao observar de maneira geral, não há mesmo. No ponto em questão, não existem mais maneiras de apagar um trauma já estabelecido. A busca, por sua vez, passa a ser a justiça – como também é retratado em Graças a Deus – pela necessidade não só de alívio, mas também de impedir futuros traumas. A falta do confronto direto entre a personagem de Andréa não prejudica sua jornada pelo fato do espectador já conhecer sua dor, lindamente representada através das poderosas danças. Os momentos artísticos do filme transmitem sentimentos mistos, mas fica claro o peso sobre a vítima e o quanto isso a prejudica. Sobre esse quesito, o texto escolheu o segmento de “seguir em frente”, mas provando o quão difícil é esquecer. Muito desse ponto está presente na bela dinâmica da protagonista com Carole Franck, que aqui, faz a função direta do espectador, como a principal ouvinte da personagem. 

Inocência Roubada foge do senso comum, mas se mantém no básico em sua narrativa. No entanto, consegue provocar os mais diversos sentimentos no espectador, que provocam os mais inesperados pensamentos sobre suas vivências e atitudes, gerando assim, um desconforto culminante, porém útil. 

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