Sempre que analisamos um filme, ou qualquer produto da arte, mais afundo, chegamos àquela parte da discussão em que tentamos entender se a cortina era azul porque tinha alguma significado maior ou se era azul porque nenhuma outra cor estava disponível. Talvez a coisa mais satisfatória – e intrigante – de analisar uma obra de um artista cujo talento e maestria já são fatos conhecidos e comprovados, é ter a certeza de que todas as decisões tomadas em sua obra são propositais, calculadas e carregam em si grandes significados, ainda que a gente não consiga entender todos eles. Esse é o caso de Park Chan-wook e seu filme mais recente “Decisão de Partir”, que já está na shortlist do Oscar na categoria de Melhor Filme Internacional.
Na trama, que é tanto um mistério policial quanto um romance, o detetive Jang Hae-joon (Park Hae-il) é um homem casado e um workaholic, mas seu relacionamento peca na falta de intimidade e seu excesso de trabalho mais tem a ver com sua insônia latente do que com sua paixão pela profissão. Hae-joon vive no automático, até mesmo o sexo com sua mulher é marcado. No entanto, os sentidos do detetive voltam à vida quando ele é chamado para investigar a morte de um homem que caiu da montanha que estava escalando. A princípio a morte parecia um acidente, mas algumas circunstâncias duvidosas o levam a chamar a esposa do falecido para interrogação e aí entra Song Seo-rae (Tang Wei), uma imigrante chinesa que tem dificuldade com a língua coreana e recorre ao auxílio do tradutor para elucidar suas palavras, mas não é apenas seu idioma que gera confusão, o comportamento de Seo-rae flutua entre o luto característico de uma recém-viúva alternado com uma apatia e indiferença de quem não perdeu nada inesperado, a própria mulher diz que já esperava que esse fosse seu destino, mas essa reação causa suspeita mais em Soo-wan (Go Kyung-Pyo), o assistente de Hae-joon do que no próprio detetive, isso porque desde o momento em que viu Seo-rae se sentiu atraído por ela.
A atração entre Hae-joon e Seo-rae é imediata e inevitável, pelo menos para Hae-joon que vê atração passando para afeto, amor e chegar no ponto de obsessão. Os sentimentos de Seo-rae são mais difíceis de se interpretar e até mesmo de confiar, não só por nós, mas acaba plantando a semente da dúvida também em Hae-joon. Quando isso acontece, no entanto, seu amor pela viúva já é ultrapassa os limites de sua desconfiança. Todas essas nuances são acentuadas pela direção de Park Chan-wook que, diferentemente de seu último trabalho, A Criada, onde usou (e às vezes abusou) da sexualidade e da explicitude, agora tomou o caminho da sutileza e da subjetividade, não há nudez nem ao menos beijos apaixonados, mas o desejo e a intimidade entre eles se revela com pequenos toques ou situações de domesticidade, como numa cena em que os dois limpam uma mesa depois de comer numa coreografia exata que só poderia ser realizada por um casal em plena sintonia.
A câmera de Park Chan-wook não passa despercebida, o trabalho de movimentos e a cinematografia de Kim Ji-yong criam um espetáculo visual não no sentido de beleza puramente dita, mas do domínio de técnicas de fazem com que as cenas se encaixem como um belo e engenhoso quebra-cabeça, desde os pontos de vistas inusitados (como quando vemos a cena pelos olhos do marido morto e, posteriormente, de um peixe morto), da grande quantidade de espelhos ajudando na criação da imagem ambígua da viúva, o uso criativo e original das telas de celular que contam grande parte da história, as cenas em que Hae-joon se sente tão próximo de Seo-rae que o vemos em cena junto com ela até culminar na cena final que é um show de cinema à parte.
O roteiro (uma parceria entre Park Chan-wook e Chung Seo-kyung) também é cheio de particularidades, podendo até mesmo ser confuso em alguns momentos, mas nada que a direção certeira não consigo te localizar novamente mais tarde. Com reviravoltas, crimes, revelações e mortes, o filme se mantém ativo e revigorante em seus três atos, tanto no que se diz respeito ao suspense policial quanto à distorcida história de amor entre os protagonistas. Ao mesmo que os crimes se tornam mais intricados, demandando mais da nossa atenção, as ações dos personagens também se tornam mais complexas e menos compreensíveis uma vez que perturbadas pela intensidade de seus desejos, mas também exigem mais de nosso discernimento para refletir sobre moralidade, honestidade, amor e limites.