A vida longe da ficção é cruel. Quando vemos as histórias de amor nas redes sociais tudo tem cores e alegria. O que acontece nas sombras nem sempre ganha luz, exceto quando a situação perde o controle.
A técnica de enfermagem Elize Matsunaga ganhou a luz midiática em 2012, após o brutal assassinato de seu marido Marcos Matsunaga, empresário importante do ramo alimentício. Ela matou e esquartejou a vítima para dificultar a elucidação do caso. O crime chocante virou um prato cheio para o noticiário policial e a mídia sensacionalista que explorou bastante o caso.
E não foi por acaso que um gênero de produções audiovisuais tem ganhado força nos últimos anos, o “True Crime” que mistura o fascínio e a curiosidade do público por crimes reais de grande repercussão ativadas por essa normalização da brutalidade do jornalismo policial diário. Esse gênero ajudou a popularizar diversos podcasts e agora chegou com tudo ao streaming.
A Netflix aposta neste gênero pela primeira vez com “Elize Matsunaga: Era uma vez um Crime”. A série documental dirigida por Eliza Capai é precisa na abordagem dos 4 episódios e na construção da narrativa através da visão da defesa, da polícia, da imprensa, da promotoria e da própria assassina confessa Elize Matsunaga. Sem sensacionalismo, sem escolher lado, com a única preocupação e cuidado de contar uma boa história.
A fotografia é outro acerto com boas escolhas nos planos nos registros do cotidiano de Elize durante a saída temporária dela da cadeia que permitiu que ela pudesse dar os depoimentos.
A série se debruça sobre a versão superficial do casamento perfeito, marido exemplar com esposa dedicada, para mostrar o lado nada romântico e sombrio de uma relação abusiva e estranha longe dos olhos dos outros. Desde o fascínio por armas e um paiol mantido na cobertura onde o casal morava até os casos extraconjugais de Marcos e o passado de abusos e a vida como acompanhante de luxo de Elize, incluindo a forma como os dois se conheceram.
A montagem descasca esse lado sombrio em camadas com muito êxito sem pesar a mão e fazer juízo de valor. A profundidade de um trabalho como o deste documentário é importante para sair da discussão rasa dos programas policiais que com muita misoginia e outros preconceitos resumem os crimes do noticiário a uma simples luta entre o bem e o mal.
Ao ouvirmos uma assassina confessa de um crime brutal e observarmos o seu cotidiano, não estamos glamourizando o crime cometido, estamos vendo que ela é humana. E humanos erram. Elize foi condenada a 19 anos de prisão e com 7 anos passou a ser beneficiada com a saída temporária, um mecanismo de ressocialização de presos em regime fechado, previsto na legislação brasileira há anos, que independente de ideologia ou de conceitos sobre o crime cometido existe para que o detento não deixe de ser humano depois de anos no cárcere.
Desde a prisão preventiva ela não teve mais contato com a filha que depois teve a guarda revertida para os avós paternos e espera que em algum momento consiga judicialmente o direito de encontrá-la.
Com várias vidas destruídas numa história real e cruel é impossível concluir que o documentário mude a visão de que “o crime não compensa” num cenário desse onde todas as vidas foram mudadas para sempre por uma sucessão de escolhas ruins.