Tomo liberdade para com o leitor, para entender ou relembrar a grandeza dessa obra atemporal, que nos atinge bem no núcleo dos nossos dias. A importância visionária de ‘1984’ é um conto do presente, de dia após dia. Nesse tempo de escolher lados ou questões, George Orwell nos mostra que os tempos passam, mas a cegueira humana não.
Existem duas ambientações da obra clássica do autor para o cinema. A primeira foi lançada em 1956, dirigido por Michael Anderson, com Edmond O’Brien interpretando o protagonista Winston. Já em ‘1984’ (nome mais do que sugestivo), temos o grande John Hurt como protagonista, com a direção de Michael Radford.
Existe essa fagulha do tempo onde se incendeia corações por um ato declarado em 1948, mas apresentado em uma obra digna de sua grandeza somente em ‘1984’, feito no ano que leva o nome do seu título. Nela, o personagem Winston escreve em seu diário secreto sem ter grande certeza da data, onde ele define o que vive como um tempo de engano universal, onde dizer a verdade é um ato revolucionário. Onde, ao dizer tal coisa, as pessoas te chamam de louco. Onde ao pensar o contrário, te prendem, te humilham, te desprezam e te executam. Tais atitudes são consideradas o pensamento-crime, a vontade contrária do partido onde Winston vive: a Oceania, país que está em constante guerra com a Eurásia e a Lestásia.
O principal inimigo da Oceania é o temível Emmanuel Goldstein, cujos apelidos a maioria encontra para inferiorizar. O mundo é cercado por aparelhos que transmitem a mídia manipulada, ao mesmo tempo em que mantêm todos vigiados o tempo inteiro. Os mantimentos são friamente fracionados, o passado pode ser alterado em prol dos interesses do Núcleo do Partido do Grande Irmão. O Grande Irmão, aliás, é o rosto e a força do Partido, a quem todos devem amar, temer e respeitar, mesmo que ninguém o tenha visto. O pensamento-crime, citado anteriormente, é mais uma palavra da Novafala, o idioma do futuro – a única língua que diminui no lugar de se enriquecer.
Amor, felicidade e liberdade? São maquiados pelas estridentes frases do Partido onde deve-se pensar que Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão e Ignorância é Força. Winston, ao enxergar a doença encontrada na alienação, se vê como um indivíduo incompreendido ao ver um organismo vivo e cancerígeno que o cerca. Sendo assim, para liberar todo grito acumulado dentro de si, ele decide escrever um diário para ser lido no futuro ou no passado, em um tempo onde o pensamento seja livre. Um tempo em que homens possam ser diferentes dos outros. Que homens e mulheres não vivam sós, mas que se amem, que queiram seus sonhos e que consigam todos eles.
Escrito em um tempo da era da escravidão do duplo pensamento, onde o Grande Irmão tudo vê, para um tempo onde a busca de amar seja tão fácil de entender e compreender a liberdade de dizer que 2+2 não é igual a 5.
Uma carta honesta para um amigo chamado Winston
Escrevo ao passado, de um futuro onde tiraram nossas coleiras, mas ainda nos deixam em um cercadinho onde julgamos ser confortável, temos comida, temos espaço para andar. Mas, se não trabalharmos pelo menos para conquistar o mínimo que merecemos, não temos nada para comer.
Do século da ditadura da opinião, escrevo que pouco mudou. Hoje vivemos em um muro mais contido, mas os cinco minutos de ódio ainda existem, prolongados nas trocas de canais, em um lugar onde se escreve pelo curtir. Um curtir onde se vive pra mostrar e não ser. Aqui, você também pode bater panelas ao não concordar, ou usar nossa NovaFala: Golpista, Fascista, para se auto-convencer de que está na busca do bem, não se dando conta de quem o controla ainda é um homem de bigode preto com olhos gélidos e expressão raivosa.
O Grande Irmão se foi, mas deixou muitos parentes. O Goldstein nos é apresentado a cada perda de força dos governos. Ainda julgamos sem refletir, ainda que o que nos dizem seja a verdade. O que vemos é tão importante e absoluto que sentamos em nossos sofás e, com um clique em uma tela, revolucionamos nossa consciência e a tornamos limpa. O importante é opinar, e não saber. Existem lados, e se você não escolher o seu, não faz parte do bem ou mal, se visto de opinião contrária àquela que você escolher.
Preferimos falar sobre tudo, mas viver sobre nada do que dizemos. E, quando vivemos, é por um simples comando de alguém tão mal intencionado que, quando nos damos conta, estamos chamando monstros de mitos, ou partidos de família – ou até heróis. Sobre o amor, é algo de constante evolução. Hoje o amor só é aceito quando condiz com a obrigação social, mas não por uma educação ou compreensão de iguais. Sobre sermos iguais: acredito que vocês saibam muito mais do que nós o que isso significa. É uma pena que vocês tenham sido vistos como códigos de barras, onde só mudavam os números finais. Hoje gostamos de ser diferentes. Hoje é preciso desvincular seu gênero sexual para ser aceito por outro. Questionamos direitos, queremos igualdade, mas ainda não entendemos que ser igual é um tratamento, não um julgamento de como deve ser.
Hoje 2+2 é igual a 4, pelos menos quando sabemos fazer tal soma. Números nos afugentam em uma crise – pelo menos é o que dizem. Falam que estamos sem emprego, sem saúde, sem vida. O senhor em 1984 dizia que precisávamos aprender muito, mas escolhemos aceitar o argumento de alguém por ser mais fácil do que construir o nosso próprio pensamento. Mas ainda é assim.
Porém deixo uma reflexão ao senhor, Sr. Winston. Será que não deveríamos desaprender tudo que o mundo nos ensina? Quando nascemos, estamos imunes às nossas síndromes. No entanto, ao crescer, vem o medo, a ganância, a inveja, a mentira, o ciúme, o vício, a dor e, por fim, a busca de um caminho que nos desemboca na morte. Quando cresci, desaprendi a amar sem dor, a me alegrar sem invejar, a comemorar sem ter que mostrar, a me libertar ao invés de me conectar. Não é de toda verdade o que digo: é de um resquício de liberdade que eu ainda respiro nas minha idéias. Não escolhi lados, e nem quero! Acredito apenas que devemos não ser de classe, ou da cor vermelha ou azul. Vejo cada vez mais que todos nós estamos chegando na lua, e cada vez mais deixando a terra, o nosso lar. Esquecemos de quem nós devemos ser e de sonhar. Preferimos sofrer do que tentar, e se é reclamando que se ganha voz, é isso que eu mais aprendo ao nascer dos dias. Estou simplesmente cansado de me encaixar nisso tudo.
De alguém do futuro de 2016, vos digo que nada mudou, mas que a esperança é uma data em que as crianças vão nos ensinar o que nunca deveríamos ter esquecido.