Esses dias eu estava lendo sobre um salão de beleza na Alemanha, que gerou polêmica ao usar uma foto de Hitler numa campanha publicitária. Acreditem ou não, era uma promoção para ‘tirar o bigodinho’ com cera, mas logo descobriram que também era um protesto da dona do salão contra a extrema direita alemã. Mesmo ela estando no seu ‘direito’, usar imagens com referências nazistas é contra a lei no país e a promoção do salão teve que acabar mais cedo para não causar problemas à proprietária. Sim, essas coisas absurdas acontecem todos os dias.
Você deve estar pensando o que isso tem a ver com o texto, mas acontece que no dia seguinte fui assistir à produção britânica ‘Negação’. O filme é baseado em fatos reais e conta a história de uma professora que sofre um processo judicial por difamação de um historiador que nega veementemente a existência do holocausto. Para quem leu e acha que não entendeu, é exatamente isso. David Irving processou Deborah E. Lipstadt por ela o chamar de ‘negador do holocausto’, haja vista que ele chegava até a oferecer dinheiro a quem apresentasse uma prova concreta de que esse ato lamentável contra a humanidade houvesse realmente acontecido.
‘Negação’ é um filme muito recomendado a quem se interessa por tramas que envolvem processos judiciais, pois através dele você pode conhecer algumas peculiaridades dos bastidores de um julgamento, como os motivos usados para solicitar uma dispensa de júri popular, ou saber como se monta uma estratégia de defesa, etc. Além disso, o filme também tem seu valor histórico, pois como mencionei, é uma história real. É aquele típico filme que pode ser aproveitado até em áreas acadêmicas, como fonte de conteúdo auxiliar para estudantes e afins.
O fato de ser um drama muito bem feito deve-se às boas mãos que o fizeram. A direção fica por conta de Mick Jackson, mais conhecido no cinema por filmes como ‘O Guarda-Costas’ e ‘Volcano: A Fúria’, mas que teve uma carreira sólida também na televisão. Inclusive, talvez o seu melhor trabalho na carreira seja o drama ‘Acusação’ (com James Woods), também baseado em um julgamento real (neste caso, abuso de menores), que ganhou dois Globos de Ouro, além de ter sido indicado a mais dois.
O roteiro de ‘Negação’ é baseado no livro escrito pela própria Deborah Lipstadt, e foi adaptado pelo premiadíssimo escritor David Hare, indicado a dois Oscars pelos filmes ‘As Horas’ (com Meryl Streep, Julianne Moore e Nicole Kidman) e ‘O Leitor’ (com Kate Winslet). Isso sem mencionar o experientíssimo elenco, liderado por Rachel Weisz, Timothy Spall e Tom Wilkinson. Com tanto talento reunido, seria improvável que as coisas saíssem tanto dos trilhos – embora certamente nos recordemos de casos onde grandes talentos foram amplamente desperdiçados.
Entretanto, o longa não é perfeito e possui seus altos e baixos. Deborah (Weisz) é apresentada como uma pessoa de opinião forte, mas que sempre se recusa a debater em público com quem não concorda consigo. Já David (Spall) usa sua liberdade de expressão e eloquência para provoca-la, querendo um debate. Como ela não aceita, ele decide processá-la. Mas, em termos de história, há um problema nisso. Desde o início David é retratado como alguém sem escrúpulos, que sabe que se provar que Auschwitz nunca existiu, todo o holocausto é colocado em xeque. No entanto, seus argumentos são bem pouco convincentes.
Quando chega a preparação para o julgamento, é Deborah que tem uma super equipe de defesa, enquanto David está por conta própria. Vejam se conseguem me acompanhar, todas as apostas de vitória estavam do lado de Deborah, desde o início. Mas, para a história ficar interessante, tinha que haver uma dose conflito e dúvida com relação a protagonista. Pena que algumas soluções que o filme encontra sejam confusas ou logo descartadas, como quando dizem para Deborah tomar cuidado com o advogado inglês, pois isso não leva a absolutamente lugar algum.
Outro problema está com a personagem principal. Rachel Weisz faz um trabalho fantástico e extremamente plausível, mas sua personagem é pouco ativa dentro da trama. Ok, tudo o que acontece que move o filme é por causa dela, mas reparem na forma secundária frustrante como sua personagem é colocada de lado, praticamente desde o segundo ato do filme. Muitas pessoas podem não se incomodar com isso, mas algumas (como eu), certamente vão. Em filmes, o espectador gosta de conflito (quando as coisas não vão bem é que conhecemos as pessoas), apostas (sem algo a perder não damos muita importância ao conflito) e transformações (queremos ver o personagem crescer, mudar, aprender).
Tirando esses detalhes da história, a direção de Mick Jackson é bastante segura. Muitas cenas carregam o peso dramático necessário para convencer e ele sabe extrair o melhor do seu elenco. Algumas nuances e sutis características dos personagens vão se revelando aos poucos. Destaco a cena do jantar, onde Deborah acaba demonstrando sua impaciência – que pode ser um dos motivos de ela não participar de debates – ou as sequências do tribunal, onde aos poucos David vai revelando sua verdadeira face.
‘Negação’ também ganha pontos por sua realização neste momento social e político em que vivemos. É verdade que todos têm direito a sua opinião, mas faltar com a verdade publicamente, influenciando outras pessoas, é algo muito grave. E eu penso que é aí está o centro da discussão do filme. Há uma frase que chama a atenção, que é ‘o covarde só ameaça quanto se sente seguro’. Há pessoas – públicas ou não – que realmente não parecem estar se ouvindo quando dizem alguma barbaridade ou encorajam discursos de ódio por aí. Tenho absoluta certeza que vocês conhecem ou já ouviram um desses discursos absurdos.
E eu acredito que é por isso que o filme funciona. Além de todo o elenco estar muito bem, como já mencionei, os eventos do filme são uma metáfora e um espelho para a nossa sociedade, e acabamos nos identificando porque no fundo, por mais bizarro e caricato que seja o personagem David Irving (num excelente trabalho de Timothy Spall e lembrando muito um certo político que vocês conhecem) sabemos que infelizmente existem pessoas preconceituosas assim. Como o filme chama, os ‘negadores’.
Concluindo, por mais que ‘Negação’ derrape algumas vezes na construção do seu mistério, é uma produção muito bem feita (indicado ao BAFTA de Melhor Filme Britânico) e relevante para os dias atuais. Aquele habitual drama conscientizador onde o conteúdo é mais importante do que a forma.
E você, já assistiu ou está ansioso para ver? Concorda ou discorda da análise? Deixe seu comentário ou crítica (educadamente) e até a próxima!