Alguns filmes não terminam simplesmente quando sobem os créditos finais. Eles despertam debates que duram semanas, meses e sabe-se lá quanto tempo for preciso. Aconteceu isso com o francês “Elle”, no ano passado e provavelmente irá acontecer com o polêmico “Una”. O longa é baseado em um caso real de pedofilia, onde um fuzileiro naval norte-americano (que se passava por mais jovem) e uma garotinha de 12 anos (que se passava por mais velha), se apaixonaram e iniciaram uma relação. Ao serem descobertos, ele foi preso e atualmente cumpre pena pelo crime.
As grades prenunciam o destino de um adulto que se envolve com uma criança
O filme é baseado na peça “Blackbird”, do dramaturgo David Harrower. O próprio autor adaptou o roteiro e é quem dirige a versão cinematográfica da obra. Naturalmente, foram feitos alguns ajustes para versão ficar mais audiovisual, mas a essência “teatral” da obra foi mantida. Isso fica muito claro, por exemplo, nos diálogos dos personagens. Mas, a vantagem do cinema também foi explorada, através da cenografia e algumas metáforas visuais utilizadas.
O polêmico reencontro entre abusador e vítima
Após rever uma foto antiga, a jovem Una (Rooney Mara, de “Carol”) finalmente toma coragem e vai atrás de Ray (Ben Mendelsohn, da série “Bloodline”), o homem que a seduziu quando tinha apenas 12 anos e com o qual manteve relações por alguns meses. Em seu local de trabalho, Ray fica petrificado ao vê-la. Ele tinha cumprido sua pena há alguns anos e se mudou para recomeçar uma nova vida. Quando eu mencionei que “Una” é um filme polêmico, não me referi a cenas fabricadas para “chocar” o espectador. O longa não é esse tipo de filme.
Ao invés disto, a história habilmente causa desconforto no espectador pela forma como os personagens são retratados e reagem às situações. O filme não antagoniza nenhum dos lados, apenas apresenta os fatos e coloca a plateia na condição de “juiz”, certamente dividindo opiniões. Haverá aqueles que irão acreditar que Ray não é um predador sexual psicopata e também aqueles que irão ficar do lado de Una. Afinal, se ela teve toda sua vida arruinada tão cedo, por que ele teria o direito de refazer a sua como se nada tivesse acontecido?
Basicamente, o filme consiste neste confronto complexo e necessário entre ambas as partes. As frustrações internas precisam ser exteriorizadas, para quem sabe, finalmente esquecerem o que aconteceu e seguir em frente – principalmente a atormentada Una. O ritmo do filme é muito paciente e apesar do tema forte e das emoções envolvidas, o tom é quase sempre reflexivo. Muita gente diz levianamente que é favorável a “toda forma de amor”. Mas, e quando o amor enfrenta uma diferença de idade tão grande?
A inocência se foi
A experiência de David Harrower como diretor de palco incrementa ainda mais as atuações do pequeno, porém talentosíssimo elenco. Além da dupla de protagonistas, Riz Ahmed (“O Abutre”) tem maior espaço na trama. Ele é um funcionário de Ray que acaba se encantando pela beleza de Una. E, convém dizer que um dos motivos de o filme funcionar tão bem é essa sintonia entre os personagens, que apesar do texto teatral demais, consegue extrair interpretações plausíveis. Claramente o objetivo do filme não é provar o que é certo ou errado, mas estimular a discussão sobre o assunto.
Para apreciar “Una”, vai ser necessário mente aberta e flexibilidade moral por parte do espectador. A direção de Harrower é muito interessante. Em um dos planos iniciais, o silêncio predomina e a câmera segue a protagonista (ainda criança) até certo ponto, para depois deixa-la seguir sozinha. No plano seguinte, um barulho ensurdecedor de uma casa noturna e a câmera a acompanham até o banheiro, onde a personagem tem relações sexuais com um desconhecido. Desta vez, não a abandonamos, como se soubéssemos que aquela garotinha do início se foi, e nunca mais iria voltar a partir daquele momento.
O trauma sofrido pela jovem Una irá mudar sua vida para sempre
A dualidade de “Una” está presente também nas atitudes dos personagens. Una foi até o emprego de Ray, colocando sua estabilidade em risco mesmo sabendo que ele pagou todas as suas pendências perante a lei. Por outro lado, alguns homens costumam alegar que garotas são mais maduras do que aparentam ser e sabem bem o que querem, o que não é verdade. Assim, eles justificam seus erros apoiados em convenções da sociedade, o que é um absurdo. Acompanhamos algumas cenas nos perguntando se os personagens são estúpidos ou loucos demais.
Subversão da expectativa
Como fiz menção anteriormente, o filme possui vantagens cinematográficas com relação ao palco onde a peça original é exibida. Talvez o fato de a maior parte da história se passar em um grande galpão, com os personagens se deslocando sem escapatória, pode significar o labirinto emocional pelo qual ambos se encontram e precisam enfrentar. Eles são frequentemente enquadrados por trás de emaranhados de vigas, escadas, ou deslocados no canto do quadro, mostrando o quanto ainda estão entrelaçados, confusos e pressionados.
As enormes vigas e emaranhados do galpão são como labirintos para os personagens
O filme também subverte por várias vezes nossa expectativa. O final é propositalmente anticlimático e inevitavelmente nos deixa pensando sobre tudo o que acabamos de ver. O silêncio predomina – a trilha só surge quando parece que algo de muito ruim está para acontecer. O contraste do preto com o branco, da luz com a escuridão proporciona um efeito chiaroscuro que combina e reforça a ambivalência da história. Vale ressaltar, não há apologia à pedofilia, apenas o estímulo do debate sobre o assunto.
Concluindo, “Una” certamente é um filme pouco confortável de se assistir, mas que abre oportunidade para uma série de discussões relevantes. A força do filme reside na entrega e sintonia do talentoso elenco, com destaque para a obstinada Rooney Mara e o conturbado Ben Mendelsohn. Em uma época onde é difícil ir contra a corrente por medo de rejeição ou opiniões negativas, o filme tem coragem suficiente para tocar em um tema delicado de maneira provocativa, porém sem ser negligente. Um dos grandes filmes do ano até aqui.
E você, já assistiu ou está ansioso para ver? Concorda ou discorda da análise? Deixe seu comentário ou crítica (educadamente) e até a próxima!