CinePE 2018 | O que rolou na abertura

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O festival de audiovisual de Pernambuco, o CinePE, começou agitado no Cinema São Luiz, sendo marcado por uma plateia extremamente participativa, sem receio de vaiar nomes de autoridades e apoiadores, nem mesmo de demonstrar insatisfação com os atuais governos brasileiros, algo que ganha força nos já conhecidos gritos de “Fora Temer”. Essa atitude vibrante e provocadora ecoou nas apresentações das obras exibidas nessa primeira noite, onde a política também voltava nas palavras dos realizadores e apresentadores. Um dos momentos mais marcantes aconteceu quando a carioca Yasmim Dias, diretora do curta “Marias”, foi ovacionada ao contar o processo de produção deste pequeno grande documentário que aborda a violência contra as mulheres, sendo uma das personagens principais ela mesmo, ao narrar a morte de sua mãe, vítima de um feminicídio.
Outro momento alto da noite foi a homenagem para a cineasta Pernambucana Kátia Mesel, primeira mulher a participar de um festival de cinema brasileiro, algo ocorrido apenas em 1973. Dona de uma filmografia extensa (computa-se mais de 300 obras de sua autoria), Mesel ainda passa abaixo do radar para muitos e uma homenagem é uma forma de iluminar sua carreira, principalmente para as novas gerações. Em sua fala, Kátia Mesel define-se como uma realizadora de outro tempo e detalhe sua passagem das filmagens em câmeras super 8 para a realização em 35 milímetros. Nesse processo ela traz a memória de um cinema realizado com extremo cuidado, onde um olhar acertado passava por uma preocupação em registrar apenas o necessário naquela mídia fotossensível, onde o racionar, o conceituar e o emocionar vinha antes do que o registrar. Kátia Mesel com sua fala e seus filmes demonstra que nomes como o dela devem ser resgatados com urgência histórica.
Após esse primeiro momento o público finalmente teve acesso aos filmes, nas suas sessões curtas, separados em duas mostras: a Pernambucana e a seleção nacional. Além disso, a noite de abertura contou com duas obras fora de competição, o curta “Desculpe, me afoguei” e o longa “Mulheres Alteradas”. Vamos aos filmes.

Cinema é compromisso
Talvez os dois filmes que tenham chamado mais atenção nesse primeiro dia contenham em sua essência uma necessidade de expor realidades emergências, onde o fazer cinematográfico constitui-se por uma forma de comprometimento social. No curta “Marias”, a diretora e personagem de seu documentário diz em um momento, ao relatar a trágica morte de sua mãe pelas mãos de seu ex-marido, que ela prometeu virar esse jogo, demonstrar que nada daquilo foi em vão e que ela ainda faria a mãe se orgulhar desse compromisso, algo que se reflete imensamente no filme. Yasmim Diaz, mais do que transformar dor em arte, escancara sem medo e sem concessões essa realidade. Os depoimentos de outras quatro mulheres vítimas de violência são duros e secos, chocantes e alarmantes. Não há como ficar impassível diante de “Marias”. A mistura entre depoimentos, narrações do próprio caso particular da diretora e sequências coreografadas com modelos representando a violência contra a mulher fazem um filme forte, um testemunho e um testamento emergencial. “Marias” fica num lugar limítrofe entre o comprometimento e até mesmo a um sensacionalismo, a utilização de trechos de um programa como “Cidade Alerta”, a utilização da trilha musical e os elementos sonoros, promovem uma espécie de choque quase forçado ao espectador, algo que não apaga a relevância do curta. Parece que esta questão provém muito mais de uma falta de um ajuste fino, de uma consciência em relação aos poderes das ferramentas audiovisuais. Mas talvez não exista tempo para pensar nesse quesito quando a necessidade de expor um problema é tão grande.
O compromisso temático é visto em “Desculpe, me afoguei”, animação realizada para e pelo programa “Médicos Sem Fronteiras”, realizado por Hussein Nakhal e David Hachby. Talvez aqui exista justamente essa consciência da forma fílmica que algumas vezes não é sentida em “Marias”, algo que a jovem realizadora com certeza encontrará ao longo de sua carreira. “Desculpe, me afoguei” é uma espécie de dramatização de uma suposta carta de um imigrante que se afogou no Mediterrâneo numa tentativa de chegar à Europa. A animação extremamente precisa não tenta apenas traduzir o que é dito na carta em imagens, mas consegue fazer uma análise muito concreta de uma sociedade que deixa faltar o essencial, a falta de humanidade. A animação constitui-se a partir dessa não presença, onde as figuras e os locais humanos tomam a forma de ruídos imagéticos, um chuvisco televiso que marca essas imagens humanas. “Desculpe, me afoguei” é um filme raio-x, onde os tons de cinza mostram um ambiente nocivo e adoecido, uma incapacidade do olhar, uma incapacidade de enxergar esses espaços humanos como forma de conectar-se ao outro. Um filme que faz um diagnóstico preciso utilizando a animação como forma essencial de fazer esse exame.

Em Busca de um Estilo
É totalmente comum nos curtas-metragens que exista uma ideia estética, um caminho para encontrar um estilo de cinema a ser seguido, trazendo de forma reconhecível referências e escolas cinematográficas. A seleção do CinePE não é diferente, e a maioria dos filmes vistos nessa primeira noite caminhavam nessa direção, culminando na apresentação do longa de abertura que em linhas gerais parte de um grande exercício de estilo.
As duas animações pernambucanas demonstram em seus traços essa aproximação com escolas diferentes, algo que materializa demais essa busca por um estilo. “Dia-Um”, de Natália Lima, até mesmo por sua pequena duração, apenas dois minutos, demonstra um apreço por sua forma, o traço que dialoga claramente com o estilo nipônico, principalmente dos estúdios Ghibli, é o que de fato chama atenção para o filme. Algo parecido acontece com “O Consertador de Coisas Miúdas”, que através de um traço simples chama atenção para um personagem que busca resgatar coisas antigas, quase uma recusa do diretor, Marcos Buccini, por uma forma mais sofisticada, onde o estilo acaba chamando atenção justamente por certo desprendimento estético, até mesmo certa recusa estilística é uma firmação de qual cinema quer se fazer.
Algo que fica ainda mais forte nos filmes da competitiva nacional, em “Sob o Delírio de Agosto” e “O Abismo”. O primeiro partindo de um suspense psicológico faz questão de acentuar na montagem, na composição de planos e na atuação uma construção narrativa marcante, a mão do diretor é sentida, parece justamente uma vontade de se afirmar como mente pensante daquela obra. “Sob o Delírio de Agosto” passa muito mais pela forma de retratar o que seu protagonista sente, um homem marcado pela violência que trabalha no abate e é dominado por seus pesadelos e memórias, do que realmente entender o que aquele ser passa. A escolha por fluxos de loucuras, marcados por uma montagem rápida, com planos gerais de grande duração, demonstram um cinema que deseja se encontrar num mar de referências muitas vezes antagônicas, algo sentido a todo o momento no filme.
É um pouco o que se passa em “O Abismo”, claramente um exemplar de cinema de montagem, onde alguns elementos básicos do fazer cinema são acentuados, basicamente o ator, a locação e a edição do filme. É nessa forma simples de fazer cinema que o diretor Ivan de Angelis constrói toda sua ficção a partir de um filme formal, apoiado justamente nas ferramentas audiovisuais, extrapolando suas utilizações e seus significados. A história de um porteiro preso numa situação surreal, que é a de nunca chegar ao térreo, preso entre o elevador e as escadas de serviço, passa justamente por um exercício de linguagem, onde a edição torna essa impossibilidade factível. Talvez, a grande questão do curta surge por acreditar que desse exercício quase metalinguístico surja uma conclusão tão filosófica para a narrativa, algo que funciona, mas que não é tão surpreendente ou pouco óbvia. Se “O Abismo” é um filme sobre um sentimento mecânico, um se perder no automatismo, há necessidade de afirmar que a própria obra acredita demais na transcendência das ferramentas audiovisuais. Como exercício é extremamente funcional, mas falta algo para ser tão conclusivo quanto a obra acredita ser.
É também a partir da forma que “Mulheres Alteradas” chega a sua personalidade. Se há uma necessidade de renovação na comédia brasileira, vide uma recaída desse gênero tão popular nas bilheterias, o longa de estreia de Luis Pinheiro propõe isso justamente através do estilo. Baseado numa série de quadrinhos, o filme foca em conflitos comuns da mulher contemporânea, e temas que podem ser vistos em uma série de filmes e seriados brasileiro ganham contornos diferenciados justamente por sua estética. Contaminando-se dos estilos cartunesco das HQs,”Mulheres Alteradas” parte de uma hiper-construção, onde a fotografia extremamente fluída com planos-sequências atípicos, a direção de arte extremamente colorida e as atuações caricatas fazem que o filme fuja de um típico recorte naturalista. Se ainda existe a possiblidade problematizar as questões inseridas no filme, como a representação da mulher e sua constante dependência masculina, ou até mesmo como essas atuações exageradas ajudam apenas a trocar um estereótipo por outro, é necessário afirmar como a proposta estilística provinda de uma série de outras referências (quadrinhos, videoclipes e as novas séries) podem gerar um ganho a temas já vistos inúmeras vezes. No fim quase tudo se resume a estilo.

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