Muitas vezes, ao assistir a uma obra audiovisual, não se tem noção dos processos que levaram para a construção desde a ideia até o produto final. O desenvolvimento desta obra foi composto por diversas etapas que tornaram possível o que se vê na tela, desde a escrita do roteiro até a escalação de atores, a direção de fotografia, direção de arte, produção executiva, escolha da trilha sonora, montagem, efeitos especiais e, além disso, a distribuição – valendo ressaltar que, se o objetivo fosse indicar todas as etapas uma a uma, não sobraria espaço neste texto para abordar qualquer outro assunto. Esta matéria visa, entretanto, focar na direção de arte e no seu poder de agregar ainda mais valor a uma obra, tornando-a não só visualmente mais bela, mas também mais significativa, profunda e, possivelmente, com uma maior identidade própria. Como principal objeto de estudo, este texto considerará uma série bastante conhecida pelo público geral atualmente e que conquistou uma grande quantidade de fãs desde os Estados Unidos até o Mundo Invertido: Stranger Things.
Em 1983, na pequena cidade de Hawkins, Indiana, um garoto de 12 anos desaparece misteriosamente, e o esforço coletivo de diversas pessoas para desvendar os desaparecimentos na cidade acaba levando a descobertas surpreendentes. Esse é o plot principal de Stranger Things, uma das séries mais comentadas nos últimos anos desde sua estreia em 2016, tendo sua terceira temporada chegado recentemente na Netflix. A obra é bastante elogiada por suas referências pontuais aos anos 80, sua trilha sonora, sua direção de fotografia e até mesmo por seus atores, que conseguem ser extremamente carismáticos dentro e fora da tela – o que agrega bastante ao sucesso da produção.
Será discutido, portanto, como a direção de arte também é um fator de extremo poder sobre a série e sua identidade própria – talvez até mais poderoso do que a própria Eleven. É importante ressaltar também que será levado em conta direção de arte como a concepção do ambiente plástico de uma obra, assim como indicou a autora Vera Hamburger, abrangendo tanto a cenografia e o figurino quanto as cores escolhidas para compor o aspecto visual da narrativa apresentada.
Pode-se considerar a cenografia como o desenvolvimento visual de todo o local onde se passa a ação, desde a locação até os objetos que compõe a narrativa daquela cena. Uma cenografia eficiente consegue colocar o espectador dentro do universo narrativo proposto, agregando sentido à cena e tornando-a ainda mais verossímil. Uma obra audiovisual, portanto, precisa ser crível em relação à sua proposta, como por exemplo um filme que se passa no período medieval, o qual precisa apresentar uma cenografia remetente a tal, não deixando visível em cena um extintor de incêndio, um automóvel ou um celular, pontos os quais podem prejudicar a verossimilhança da obra. Tal fator também é bastante importante para Stranger Things, que se mantém bastante fiel à caracterização proposta, tendo como proposta principal uma caracterização oitentista que a série precisa.
Um dos principais fatores que se destacam, entretanto, é no quanto a cenografia consegue contar sobre um personagem. Certos espaços tem forte ligação com determinadas pessoas e, assim como na vida real, podem representar bastante a personalidade destas. O quarto de um personagem, por exemplo, pode contar bastante sobre a identidade dele, demonstrando sua personalidade, seus gostos e, as vezes, seus sonhos e desejos. Ao assistir Stranger Things, podemos também conhecer um pouco sobre alguns personagens a partir da observação da cenografia de alguns espaços, como a casa da família Wheeler, a cabana de Jim Hopper, ou até mesmo a sala de aula do senhor Clarke. Serão analisados nesse artigo, entretanto, alguns outros locais específicos, começando pelos quartos dos irmãos Byers.
Logo no início, no quarto de Jonathan Byers, o espectador se depara com um aparelho de música ao lado de diversos discos de vinil, demonstrando a paixão do personagem pela música. No desenrolar da cena, o diálogo do personagem com seu irmão confirma que possui uma relação de bastante proximidade com essa arte – principalmente com o rock. Também está em destaque um grande pôster do filme Evil Dead, que não só é útil para a caracterização do período histórico da série, mas também para mostrar que o personagem gosta bastante de filmes de terror. Jonathan também mantém consigo, mas durante grande parte da série, sua máquina fotográfica, o que não só é um objeto de cena utilizado para impulsionar a narrativa, mas também indica fortemente seu gosto pela fotografia. Todos estes fatores, desde a máquina fotográfica que frequentemente aparece nas mãos do personagem até os objetos de seu quarto, auxiliam na construção do personagem, que é apresentado como um adolescente introvertido e reservado, que prefere ver o mundo pela sua câmera e ouvir músicas em seu quarto do que cercado por pessoas em uma festa.
No quarto de seu irmão, Will Byers, também é possível enxergar um pôster de filme de terror, mas neste caso é do filme Jaws (“Tubarão”, de 1975). O fato de ambos terem esse tipo de pôster em seus quartos remete à ideia de que os dois irmãos possuem, possivelmente, uma relação de proximidade, visto que gostam do mesmo tipo de filme – e, consequentemente, gostos em comum.. Tal ideia de proximidade também é reforçada pela cena em que Jonathan apresenta algumas músicas para Will, gerando um maior vínculo entre os dois a partir de um gosto em comum. Ambos os fatores, tanto os pôsteres de terror quanto as músicas que ouvem, podem auxiliar na construção da ideia de que Jonathan possui uma significativa influência sobre o irmão mais novo.
Alguns outros quartos que marcam bastante a identidade dos personagens são o quarto de Mike e Dustin, que foram construídos de forma a deixar ainda mais evidente e demarcada a personalidade nerd/geek de ambos os personagens, com diversos objetos – tantos de cena quanto cenográficos – que ressaltam a construção da identidade de cada um deles. Diversas figuras de ação – desde uma do mestre Yoda até algumas de dinossauros – são bastante evidentes no quarto de Mike Wheeler, assim como também diversos jogos de tabuleiro ao fundo – não só no seu quarto mas também no porão – o que mostra a relação do personagem com jogos, guiando o espectador para, logo de cara, já associar a personalidade do personagem à cultura nerd.
Enquanto isso, no quarto de Dustin, o espectador consegue enxergar alguns foguetes que remetem ao seu interesse pela ciência, dois certificados que referenciam o filme Caça Fantasmas – o qual já sabemos ser um interesse comum entre os personagens – e também diversos brinquedos e figuras de ação. Os objetos que constituem o ambiente, portanto, foram escolhidos para construir a narrativa de cada um dos personagens em questão, demarcando suas respectivas personalidades. O oposto disso – a ausência de objetos – também é bem possível para contar uma história, e também representado de forma bem eficiente na série.
O quarto pertencente à personagem Eleven durante os flashbacks da primeira temporada indicam bastante sobre a protagonista da série: cresceu bastante solitária, com pouca companhia – o que atrasou seu conhecimento da língua inglesa. O quarto é todo branco, lembrando um hospital psiquiátrico, e apresenta poucos objetos pessoais – é possível ver apenas um papel com um desenho colado na parede e alguns poucos brinquedos – e esses só quando a personagem se comporta. Tal ausência de itens pessoais e importantes para a personagem demonstra sua solidão e a falta de liberdade e conforto que marcam a identidade da personagem, tendo assim perdido grande parte de sua infância, aumentando a verossimilhança de algumas das características de Eleven, que não só conhece pouco do alfabeto, mas também quase nada sabe sobre o mundo lá fora.
E, por último, vale apena comentar sobre um dos locais da série que mais tem ligação com um dos personagens: o Castle Byers. Will, com ajuda do irmão, construiu um pequeno forte feito de madeira – principalmente por galhos – atrás de sua casa, e é lá onde o garoto de 12 anos vai sempre que quer privacidade. O Castle Byers tem tanto significado para o personagem – também por ter sido construído junto do irmão em uma época de necessidade – que, no Mundo Invertido, foi o local escolhido como refúgio pelo garoto.
A direção de arte consegue ser bastante expressiva tanto no interior quanto no exterior do Castle Byers. Do lado de fora, é possível notar a verossimilhança do local pois, por ser construído por um adolescente e uma criança, é extremamente simples e improvisado, apresentando em sua entrada uma placa com os dizeres “Todos os amigos são bem-vindos. Casa de Will, o Sábio”, o que demonstra não só a bondade e gosto do Will pelos amigos, mas também sua paixão por RPG (no caso, D&D), pois “Will The Wise” é o nome do personagem no jogo. No lado de dentro, está destacada uma colcha (demonstrando o conforto do local muito utilizado pelo personagem), um abajur (indicando que o forte é usado pelo personagem para ler, inclusive no escuro), e diversos objetos que expressam a identidade do garoto Byers, como gibis – indicando a paixão de Will por quadrinhos; desenhos colados nas paredes que se relacionam à criatividade do personagem e aos jogos de RPG que ele e os amigos tanto gostam; brinquedos que remetem à sua infância, e um microscópio que demonstra o gosto de Will pela ciência – algo que também tem bastante em comum com os amigos.
Portanto, ainda segundo Vera Hamburger, é possível notar que a composição de um cenário pode ter uma forte ligação com um personagem, apresentando elementos visuais que guiam o espectador a compreender aspectos fundamentais de sua personalidade. No caso de Will Byers, o espectador vai aprendendo um pouco mais sobre o personagem conforme vai passando por diferentes cenários os quais possuem forte relação com ele. No primeiro episódio da série, é destacada sua relação de forte intimidade com seus amigos no porão dos Wheeler, um local reservado para os momentos que passa com Mike, Lucas e Dustin, principalmente pelo grande número de jogos e elementos de RPG presentes no local; nota-se sua classe social ao entrar na sua casa, esta um local humilde e afastada da cidade; e sua personalidade mais intimista e introvertida é apresenta quando é mostrado, em flashback, seus momentos aproveitados sozinho no Castle Byers.
É possível também considerar que estes cenários, ao sofrerem transformações ao longo da trama, podem indicar uma mudança na trajetória de tal personagem e em seu desenvolvimento, seja com uma alteração de sua posição ideológica ou social, seu estado de espírito, suas crenças ou qualquer outra característica que redefina a fase atual do desenvolvimento deste personagem. Nestas transformações visuais sofridas pelo cenário, o personagem é colocado em outro contexto narrativo, visto a partir de uma mudança de atmosfera do ambiente, guiando não só seu desenvolvimento como também os acontecimentos da narrativa – seja pelas cores do espaço, seu estado de conservação, ou até mesmo pelo ritmo das cenas.
Portanto, o cenário pode ser considerado um elemento vivo de uma história, se transformando e desenvolvendo junto com um personagem – ou um grupo de personagens –, indicando evolução narrativa da trama, como é possível ver muito bem em Stranger Things. O Castle Byers, por exemplo, demonstra a teoria de Vera Hamburger mais de uma vez: na primeira temporada, quando Will está perdido, Eleven o encontra, por meio de uma visão, deitado no chão do forte no Mundo Invertido. O local, desta vez, se encontra bastante acabado devido à sua presença naquele mundo – inclusive coberto pela gosma restritiva daquele local –, além de estar completamente escuro e sem vida, demonstrando a situação do personagem naquele contexto narrativo: sozinho, doente e à beira da morte.
Já na terceira temporada, o espectador vê Will perdendo a fé que tinha em seus amigos, e começando a acreditar, pouco a pouco, que aquilo que antes tanto lhe importava não fazia mais sentido, e é aí que o Castle Byers entra: no momento de catarse de seu personagem, Will destrói o local que simbolizava sua inocência e sua infância. E o próprio Castle Byers, agora destruído e aos pedaços, indica a situação atual de Will, que chegou a seus limites em um estado de afastamento das coisas que significavam muito para ele até então, se sentindo abandonado e deixando sua infância para trás.
Pode-se ver a mesma relação entre cenário e personagem ao longo das duas primeiras temporadas na residência da família Byers, onde o cenário se encontra estritamente ligado ao estado emocional e psicológico da personagem Joyce, mãe de Will e Jonathan. Em ambos os anos da série, o cenário inicia-se como uma casa comum, limpa e arrumada, mostrando o estado atual da personagem, segundo o contexto narrativo, vivendo uma vida calma, normal e sem grandes preocupações. Já ao longo das temporadas, conforme a história vai se desenrolando, a casa vai ficando mais bagunçada e, certas vezes, destruída: luzes de Natal espalhadas pela sala, buracos e pinturas na parede, desenhos espalhados pelos cômodos e janelas estilhaçadas. A degradação da casa, portanto, guia a demonstração do estado emocional da personagem, onde nota-se, também por outros motivos, que Joyce vai ficando cada vez mais preocupada, abalada, e, além disso, debilitada. Os próprios moradores da cidade, em certo ponto, começam a considerar que a personagem esteja ficando louca devido ao sumiço do filho, o que mostra o decaimento emocional da personagem interpretada por Winona Ryder.
Um prova um pouco mais concreta de quanto um cenário pode contar sobre um personagem, temos o caso dos quartos de Eleven e Suzie na terceira temporada. Após a abertura do primeiro episódio, o terceiro ano de Stranger Things se inicia com a câmera passando pelo quarto de Eleven, mostrando diversos objetos que identificam a personalidade atual da personagem, onde é possível ver uma foto de seu namorado Mike, a máscara que a personagem utiliza quando se aventura com sua irmã, um rádio, um dicionário de inglês e outros objetos que se agregaram à identidade da personagem durante o intervalo entre a segunda e a terceira temporada, como a estatueta de um unicórnio. O quarto de Suzie também nos mostra um pouco sobre a personagem, onde é possível enxergar desde um clarinete e objetos que indicam seu interesse por astronomia até o boné que marcou a identidade de Dustin durante as duas primeiras personagens, sendo, neste caso, um adereço de figurino se tornou um objeto cenográfico que nos mostra a relação de proximidade de ambos. Nestes dois momentos, a própria série indica aos espectadores, de forma direta, a relação entre personagem e cenário, se utilizando do movimento de câmera para mostrar o cenário, o qual possui diversos elementos que fazem o espectador entender, de forma rápida e sucinta, um pouco mais sobre a personalidade de cada uma das duas.
Enfim, por meio dos diversos pontos apresentados ao longo deste texto, pode-se ter uma noção do quanto uma cenografia bem pensada consegue instigar o espectador a entender cada vez mais determinados personagens de uma trama audiovisual, seja pela relação destes com o espaço, suas personalidades interpretadas a partir dos objetos ou até mesmo pelas transformações que passam determinados ambientes. Um bom diretor de arte, portanto, consegue não só tornar o aspecto visual de uma obra instigante e, quando bem feito, deslumbrante aos olhos de quem a assiste, como também agregar significado à construção dos personagens, acompanhando e guiando a narrativa a partir da visão dos espectadores. Assim, Stranger Things apresenta não só a telecinese e uma espécie de “Will tingle” para localizar monstros, mas também demonstra o poder de uma bem pensada direção de arte, que com certeza pode fazer toda a diferença.