O Sequestro do Papa
Director
Marco Berlocchio
Genre
Drama
Cast
Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Enea Sala
Writer
Marco Bellocchio, Susanna Nicchiarelli e Edoardo Albinati
Company
Pandora Filmes
Runtime
134 minutos
Release date
18 de julho de 2024
Quando dizemos que um filme é difícil de assistir, há duas possibilidades; pode ser um filme ruim ou pode ser uma história indigesta, e quando o filme é bem feito, a impressão que fica é de que a história fica ainda mais indigesta, ao mesmo tempo em que se torna impossível parar de assisti-la. Esse é o caso de O Sequestro do Papa, novo filme do diretor italiano Marco Bellocchio, que conta a história real dos Mortara, uma família judia que vivia na Itália em 1850 e que teve um de seus filhos sequestrados pela igreja católica – e quando eu digo “sequestrado”, não é uma hipérbole ou uma metáfora – ele realmente foi tirado de dentro de sua casa, contra a vontade da família, a mando do Papa, para ser criado pela igreja como católico. O tipo de enredo que só é crível porque sabemos que aconteceu de verdade e, mesmo naquela época, já teve uma enorme repercussão.
Edgardo Mortara, um menininho de 6 anos, vivia com sua família humilde, mas feliz, ao lado de seus numerosos irmãos. A primeira vez que o vemos, ele é apenas um bebê, parado em frente aos pais, enquanto alguém os espia por de trás da porta. Apesar de viverem na Itália, berço do catolicismo (e um país governado por ele), toda sua família era de judeus. Um dia, enquanto Edgardo, agora com 6 anos, brincava com os irmãos, o inquisitor da cidade entra na casa sem convite e informa aos pais que levaria Edgardo embora, porque receberam informações de que ele teria sido batizado ainda quando bebê e, sendo contra as leis católicas que uma criança fosse criada por pessoas de outra religião, Edgardo agora iria viver com a igreja, para aprender seus dogmas. Evidentemente, o desespero e os protestos dos pais são imediatos, mas o inquisitor tem a lei e a força a seu favor e só dá aos pais uma única alternativa: todos da família – pais e irmãos – deveriam se converter ao catolicismo. É uma verdadeira escolha de Sophia, e apenas a primeira das angústias (deles e nossas), mas diante da possibilidade de perder sua identidade e contrariar sua fé, os pais acabam cedendo e Edgardo é levado.
Desse momento em diante, passamos a acompanhar a batalha dos pais contra a Igreja e todas as consequências lastimáveis que vêm dela. “O Sequestro do Papa” é um filme de muitas camadas, tanto no conteúdo quanto na forma, e os dois se encontram num equilíbrio delicado e eficaz, fruto da direção competente de Marco Bellocchio, que demonstra ter uma visão muito clara de como ele quer contar – e como espera que recebamos – essa história. Um dos detalhes mais marcantes, e que dá o tom para toda a narrativa, é o modo como o papa é retratado; ele é, indiscutivelmente, uma figura poderosa, mas enquanto esse poder é, geralmente, diretamente ligado à sua santidade e benevolência, Bellocchio escolhe uma abordagem oposta, o apresentando não como um vilão óbvio, mas como uma figura amedrontadora. O equilíbrio é essencial nessa ocasião, porque qualquer exagero poderia transformá-lo numa caricatura, mas a sutileza de Bellocchio permite que a mensagem seja passada sem que seja escrita em caixa alta, afinal de contas, na história de Edgardo e, principalmente, na história da família Mortara, o Papa está longe de ser um representante de Deus.
A discussão acerca da família e da religião é igualmente complicada e envolvente. Não se discute o mérito do catolicismo ou do judaísmo, mas sim o modo como a religião é empregada por aqueles que falam e agem em seu nome. Durante o filme, que se passa num período de aproximadamente 16 anos, acompanhamos a vida da Edgardo e a vida de sua família e percebemos o quanto foi roubado de ambos, mesmo quando nem todas as partes entendem a situação. É ainda mais enervante quando notamos os paralelos entre uma narrativa que deveria pertencer apenas a um passado distante e discursos que tentam ser reforçados ainda hoje.
Pelos dois primeiros atos, Bellocchio não desperdiça um segundo de tela, tudo é feito com propósito e foco, sem deixar muito tempo para descanso; pode até ser um tanto pesado para a mente, mas o resultado é inquietação e imersão com a história e os personagens. Já o terceiro ato, excessivamente longo e menos concentrado, deixa um pouco a desejar, sobretudo quando comparamos com o que já assistimos até ali, mas isso não apaga o impacto ou desmerece a destreza de Bellocchio ao usar tantas técnicas a seu favor para tornar fascinante uma história impalatável.
Por Júlia Rezende