>Muitos podem achar que “A Mosca” é apenas um filme de terror nojento e esquisito.
E não é para menos, na trama um cientista (o futuramente Indicado ao Oscar Jeff Goldblum) descobre como fazer uma máquina de teletransporte e em um evento conhece uma jornalista (a futuramente Vencedora do Oscar Geena Davis). Não sabendo a profissão da moça, a convida para ver sua invenção (que ainda não estava totalmente completa, transportava apenas objetos inanimados).
Após descobrir o elemento que faltava para transportar seres vivos, em um momento de tristeza momentânea e sob o efeito de álcool, o cientista decide testar a máquina em si mesmo, entretanto, um acidente acontece. Ao ativar a máquina, uma mosca entra na mesma cápsula que ele, unificando seu DNA com o do inseto e transformando seu corpo e mente em uma decomposição progressiva, travando uma batalha interna, onde o instinto mais forte venceria. Tudo isso por que queria acabar com os enjoos que sentia durante as viagens…
Na época de seu lançamento, o Cinema canadense ainda era “marginal” e incógnito. O diretor David Cronenberg começou na década de 70 com filmes de orçamento baixíssimo, mas sempre abordando com maestria os horrores do corpo e do psicológico humano, mostrando como elementos externos podem afetar nossas vidas e até se voltar contra nós. Aos poucos, os orçamentos do diretor foram aumentando, assim como a qualidade de seus filmes. “A Mosca” é um remake de um filme de 1958, “A Mosca da Cabeça Branca”, dirigido por Kurt Neumann e que conta com a mesma premissa. Mas, como citei no início, a versão de Cronenberg é um filme que pode ser interpretado de várias formas. A trama pode ter sido inspirada na obra do escritor Franz Kafka, que em “A Metamorfose” declarou: “Quando Gregor Samsa despertou certa manhã de um sonho agitado, viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de inseto”. Falarei disso mais à frente. Também pode ser uma metáfora para as consequências do uso de drogas (lícitas ou ilícitas) ou anabolizantes, pois de forma visceral, o diretor mostra que a princípio, o usuário tem a sensação de incrível bem-estar, como se estivesse no topo do mundo, sendo uma versão otimizada de si mesmo. Todavia, conforme o tempo avança, as sequelas ficam evidentes, tanto na aparência física gradualmente deformada, quanto na dificuldade de se manter algum contato social por conta de preconceito, quando mesmo as pessoas mais próximas se distanciam, ocasionando isolamento, algo muito perigoso para uma mente saudável. Outras interpretações abrangem uma metáfora para doenças degenerativas e ainda sem cura como a AIDS ou até para doenças ainda não diagnosticadas, como a alienação da sociedade atual para o uso abusivo da tecnologia e Internet, coisas que, se não usadas com sabedoria, podem causar danos irreversíveis ao convívio humano como ainda conhecemos hoje em dia.
Seth Brundle (Jeff Goldblum)
“Acho que sou um inseto que sonhou que era homem, e adorava isso. Mas agora o sonho acabou, e o inseto acordou.”
O cientista introvertido e bem-humorado parece ter ido ao evento no início do filme para tentar “atrair” alguma donzela para seu laboratório, usando sua incrível descoberta para ter alguma interação com sexo oposto. Brundle é, como muitos de nós, apenas uma “sombra” do que gostaria de realmente ser. Prova disso é que sua insegurança quanto a fidelidade da nova namorada, bem como a fragilidade emocional fizeram que, por puro impulso e alcoolizado, tomasse uma decisão irracional: testar sua descoberta em si mesmo, apesar de ainda não ter resultados conclusivos sobre as consequências do experimento. Ao utilizar a máquina, Brundle pensa ter se tornado o que realmente queria ser, alguém forte, corajoso e dono de destrezas sexuais invejáveis. O interessante é que paradoxo a isso, o cientista já estava conquistando seus objetivos sem se dar a devida importância: havia feita uma descoberta revolucionária, na qual seu nome seria lembrado eternamente e havia conquistado uma linda namorada que o amava de verdade. Muitas vezes não percebemos quão afortunados somos. Na obra de Kafka, a metamorfose do protagonista Gregor também vai além da modificação física. Nela ocorre uma alteração de comportamentos, atitudes, sentimentos e opiniões, mostrando que quando você muda, tudo e todos a sua volta também mudam, servindo de alerta para a sociedade e ao comportamento humano.
Quanto à realização cinematográfica de “A Mosca”, Cronenberg dispensa comentários. Mestre do terror gráfico com doses de bom humor, o diretor constrói um clima extremamente intimista, obscuro e com poucos personagens, se concentrando essencialmente no drama sofrido pelo protagonista Seth. O trabalho de maquiagem foi impecável, tanto que levou o Oscar daquele ano, graças ao excelente trabalho de Chris Walas (que dirigiria a continuação do filme) e Stephan Dupuis. O trabalho de próteses de Rob Bottin é impressionante e fundamental para causar o impacto visual esperado por Cronenberg, que mesmo após o sucesso mundial que alcançou, ainda prefere filmar em seu país e que adora o desafio de filmar “o que não pode ser filmado”.
“A Mosca” é uma obra-prima do Cinema, um dos melhores filmes de terror de todos os tempos, inteligente e assustador, vindo de um diretor que quando inspirado consegue os melhores diálogos e situações arrojadas e audaciosas. Mesmo quase três décadas após seu lançamento, ainda impacta e faz pensar, pois combina perfeitamente violência, medo, repulsa e (quem diria?), uma bela história de amor.