)A câmera começa no espaço. O campo visual é composto pelas estrelas, por um satélite e o nosso planeta, vide cenas de Stanley Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e uma clara e belíssima homenagem a John Carpenter. A cena, por sua vez, não segue o mesmo segmento do cinema americano com a presença de música clássica ou de uma descomunal nave espacial. O silêncio do espaço é trocado pela canção “Não Identificado” – cantada por Gal Costa – e a câmera caminha em direção ao planeta, mas não persegue o clássico caminho para Nova York ou Califórnia, mas sim para o pequeno e curioso vilarejo de Bacurau, no sertão brasileiro. 

O que então se demonstra uma clássica narrativa em uma realidade criada dentro de nosso país, ganha rumos surpreendentes, recheados com uma robusta mensagem de resistência em pleno período de culto à violência envolta de afiados contrastes.

Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles – unidos em mais um projeto – realizam uma cuidadosa observação (como o próprio Kleber chamou durante a coletiva) sobre uma realidade brasileira que está longe de ser temporal. O roteiro – também desenvolvido pelos dois – traduz vivências únicas de um Brasil antigo e tão enraizado quanto o de outros já representados no cinema nacional, que ganha ainda mais forças ao conversar diretamente com uma realidade atual, mas, como um grande clássico, Bacurau conversa com o tempo que quiser, tanto em sua narrativa quanto em sua técnica.

O trabalho composto por contrastes faz do longa uma jornada pelo desconhecido dentre um cenário enraizado na alma brasileira e transporta o espectador para uma experiência única, diante características já tão familiares. Através da câmera, do uso da trilha sonora, das viradas narrativas, de seus personagens e caminhos tomados, Bacurau é um contraste já por si só. Não só as distinções do início demonstram, como servem para introduzir um todo ainda muito maior do que o espaço sideral. Com alma brasileira, mas com técnicas americanas, Bacurau é a realização de um sonho de aspirantes cineastas, por traduzir tudo o que sempre foi visto produzido por outros, mas agora, com uma alma completamente nossa. 

Bacurau, por mais forte que seja em sua mensagem de resistência, é também uma fundamental mensagem de positividade à cultura, provando, através das maiores dificuldades e conflitos, que produções nacionais podem sim chegar ao mesmo nível, e até superar as chamadas “grandes produções hollywoodianas”. Seria até hipocrisia dizer que o longa de Kleber Mendonça e Dornelles é o único com este poder, já que cineastas como Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade realizaram o mesmo feitio décadas atrás para a cultura do cinema brasileiro. No entanto, há a força de seu tempo. Mesmo com suas observações atemporais, Bacurau é um cinema que conversa com um povo brasileiro carente de discursos revolucionários, diante uma situação política, econômica e, principalmente, cultural, complicadas.

A maneira comunicativa escolhida pelos dois pernambucanos está longe de ser algo palatável. O que não necessariamente signifique algo ruim aqui. A violência adotada – muito relacionada com o estilo de filmagem de Quentin Tarantino e aproveitada de grandes acontecimentos históricos – adota uma crueldade e crueza ímpares lindamente necessárias na jornada da história criada pelos dois. Jornada essa que transporta o espectador para um ambiente longe do confortável, transformando tudo o que aparenta simples, em algo confuso, mas nunca desinteressante. O brilhantismo dessa atenção gerada está no fator da narrativa caminhar para o nada e surpreendentemente levar a um todo não esperado, mas que ainda assim faz sentido com todo o desenvolvimento da trama. O que encanta em Bacurau vai além da escrita pesada dos dois cineastas, chegando ao fato do longa se provar uma obra completa. Inúmeros longas, muitas vezes, são admirados separadamente, com destaques ou só para o roteiro, ou só para a direção ou só para atuação.

Bacurau, por sua vez, é tudo. E ainda mais um pouco.

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Claramente não se deve apenas ao belíssimo trabalho visto em primeira camada, mas também aos pequenos, mas fundamentais, detalhes. Antes de entrar em quesitos mais profundos, é necessária uma admiração pelo elenco grandioso selecionado e dirigido por Kleber Mendonça e Dornelles.

A qualidade se estabelece quando a poderosa interpretação de Sônia Braga consegue ser ofuscada pela presença de Thomas Aquino, Karine Teles, Wilson Rabelo, Barbara Colen e Udo Kier. A atenção não se deve apenas pela forte atuação de todos os citados, mas por todos possuírem personagens únicos e significativos a sua maneira na narrativa. Ainda assim, é necessário um destaque maior para Silvero Pereira. Apesar de novato – quando comparado com outros profissionais – o ator apresenta uma potência singular e cumpre a promessa envolta de seu personagem. Inclusive, personagem esse que já pode ser colocado em comparação com outros grandes nomes da ficção que o público ama odiar. 

No ponto de vista mais interno da produção, Bacurau é preenchido com sua qualidade técnica, aumentando ainda mais a experiência de quem assiste. Desde uma fotografia belíssima, – que não só é bela pelo visual, mas por sua composição – passando por um figurino apaixonante, até um trabalho impecável de direção de arte, a obra dos pernambucanos encanta, ao mesmo tempo que assusta. Há também um cuidado muito significativo com o trabalho sonoro. Kleber Mendonça se provou um admirador e amante da área com Som Ao Redor (2012), e repete um trabalho tão encantador quanto, em Bacurau. Seguindo uma linha técnica também parecida com a de Tarantino, tendo uma preocupação significativa com mixagem e edição, há uma imersão maior naquele pequeno universo “fictício”.

Por ser uma obra completa, como citado, Bacurau não é feito apenas de atores formados. Ainda que coadjuvantes e figurantes, muitas vezes, mantém-se em seus lugares comuns, aqui, eles ganham tanta importância quanto qualquer outro. Assim, o filme se prova não ser feito de história e nem de pessoas, mas o que as duas coisas juntas representam. Mesmo que armas de fogo funcionem como um símbolo de força na narrativa, a verdadeira arma de Bacurau é a identidade – como bem explicado por Kleber Mendonça durante a coletiva de imprensa. Identidade essa que é bem representada pelos cidadãos de Barra, no Rio Grande do Norte, que, mesmo sem o profissionalismo de outros do elenco, realizam um trabalho admirável e conseguem representar bem em tela todo o comprometimento com o projeto, como bem apontado pelo elenco na coletiva. 

Através de Bacurau, é possível identificar um Brasil não identificado. Com sua força bruta em trabalhar a violência, o longa não entrega mensagens, mas funciona como um gás para um grito de resistência ainda muito preso na garganta dos brasileiros. E o que muitos podem enxergar como puxa-saquismo do cinema nacional, outros podem enxergar como uma análise realizada da maneira como o filme merece, da mesma forma que se é criticado quando precisa ser.

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