Baseado em um livro, o título original de “Entre Mulheres’’ é Women Talking, ou “mulheres falando/conversando”, numa tradução literal e é o título mais fiel possível para esse filme. É comum associarmos filmes fortemente apoiados em diálogos com peças de teatro, o que faz todo sentindo considerando que o cinema é uma arte essencialmente visual e, quando a fala é o principal elemento, outros aspectos podem acabar falhando, ou não prendendo nossa atenção. A mágica de um bom diretor é saber fazer bom uso de todos os seus recursos independente da proporção dedicada para cada um deles. “Entre Mulheres” funcionaria muito bem como uma peça (como funcionou como livro), mas os visuais capturados por Sarah Polley – as crianças correndo, a liberdade do campo, a sororidade representada junção das mãos femininas – apenas acrescentam aos diálogos ricos proferidos por algumas das melhores atrizes das últimas gerações, criando uma obra completa, sensível e extremamente relevante.
Sem determinar um local ou um ano exato, vemos um grupo de mulheres de idades variadas se reunindo num tipo de estábulo com o intuito de debaterem e votarem sobre um assunto que lhes diz respeito diretamente. Várias habitantes da comunidade, de crianças a idosas, acordaram em suas camas com sangue e hematomas pelo corpo sem terem qualquer memória do que acontecera. Inicialmente, suas denúncias foram desqualificadas, sobretudo pelos homens, como fruto de “imaginação feminina” ou até mesmo obra do diabo, até que uma menina vê um homem fugindo do quarto de uma das mulheres atacadas. Descobre-se então que diversos homens da comunidade estavam envolvidos, drogando as mulheres com tranquilizante para cavalos e estuprando seus corpos inconscientes. O homem que foi pego acabou entregando os outros estupradores e esse grupo de mulheres se reuniu para representar toda a comunidade feminina e votar para decidir o destino dos homens presos, com três opções: perdoar e esquecer, ficar e lutar por seus direitos e para uma punição apropriada ou ir embora e deixar tudo para trás.
Todo o filme acontece durante o tempo de discussão dessas mulheres memoráveis. Se, no início, não sabemos em que época a história se passa, quando elas começam a conversar logo percebemos que é porque simplesmente não importa, todos os assuntos e questões por elas levantados foram relevantes nos séculos passados e seguem relevantes até os dias atuais, ainda que essa comunidade específica seja isolada do resto do mundo e tenha costumes mais retrógrados do que o que é considerado normal. As mulheres cuidam da casa, dos filhos e dos maridos, os homens fazem o trabalho braçal no campo e recebem (em algum nível) educação, já as mulheres não aprendem a ler e escrever (apesar de serem capazes de citar trechos inteiros da Bíblia). Ainda assim, suas falas são carregadas de conhecimento adquiridos pela vida e suas experiências próprias e elas são dotadas de algo muito importante, a consciência de gênero e da posição que ocupam – e também da que deveriam ocupar – nessa sociedade.
Como elas não leem nem escrevem, pedem a ajuda de um homem (Bem Whishaw) para tomar notas e documentar todo seu processo de decisão. August é um homem decente, apaixonado por Ona (Rooney Mara) e filho de uma mulher que, assim como elas, não aceitou calada o lugar que os homens reservaram para ela, mas ele está bem longe de ser um protagonista nessa narrativa e, tão utópico quanto o futuro que elas esperam alcançar, ele aceita e acolhe seu papel meramente coadjuvante. Ele também é o único homem com um nome em toda a história e isso é um ponto crucial em “Entre Mulheres”, a magnitude do protagonismo feminino, contando com um elenco a altura, com nomes como Judith Ivey, Frances McDormand (que apresenta um contraponto interessante e necessário, apesar de difícil), Jessie Buckley, Claire Foy e Rooney Mara, as últimas três as mais expressivas e inconformadas com toda a situação, mas cada uma a seu modo. Muitos pontos de vista são abordados, de acordo com cada crença e vivência, até mesmo as opiniões das meninas mais novas são levadas em consideração, afinal de contas o desfecho dessa assembleia também as afetará.
“Entre Mulheres” é um filme para ouvir, sentir e refletir. É atemporal e relevante, para todos os públicos. O roteiro e a direção de Sarah Polley são essenciais para contar uma história de um ponto de vista feminino, mas plural. Entre sobrevivência, dificuldades e superação, a união e a consciência coletiva fizeram restar o mais importante: a esperança de um futuro melhor do que o passado.