“Fragmentado” marca o retorno de Shyamalan aos grandes suspenses do cinema

Alguns meses atrás, eu estava lendo sobre um teste muito curioso chamado Myers-Briggs Type Indicator (MBTI). Foi um teste criado por mãe e filha que servia para ajudar mulheres a escolherem empregos que mais combinassem com sua personalidade. Obviamente, eu não vou explicar aqui todo o teste, mas recomendo aos interessados que procurem saber mais, pois é muito interessante.

Mesmo sendo um teste considerado bem completo e eficiente, há ‘apenas’ 16 tipos de personalidade possíveis nele, variando combinações entre extroversão/introversão, sensação/intuição, razão/emoção e julgamento/percepção. Estou contando tudo isso porque acabei de ver ‘Fragmentado’, novo filme de M. Night Shyamalan – um dos mestres do suspense no cinema – cujo protagonista sofre de 23 personalidades diferentes dentro do mesmo corpo, e como diz o slogan do filme, a 24ª está prestes a ser libertada.

Em ‘Fragmentado’, três garotas são sequestradas por Kevin (James McAvoy), um homem que sofre de transtorno dissociativo de identidade (TDI), doença na qual a mente e o corpo do afetado desenvolvem outras identidades como reação a um trauma sofrido, como forma de ajudar a evitar memórias ruins. Esse distúrbio sofre constantes críticas de médicos e especialistas pela dificuldade de compreensão e provas dos sintomas, e é interessante que o filme use isso para que possamos compreender melhor os dois lados da história.

Essa é uma análise muito difícil para mim, pois quem me acompanha sabe que gosto de escrever (e falar) bastante sobre filmes. Por outro lado, dependendo do filme eu evito qualquer contato com trailers, sinopses ou opiniões de pessoas, porque um dos maiores prazeres para mim como cinéfilo é ser surpreendido positivamente por algum filme. E ‘Fragmentado’ é o típico filme que quanto menos você souber, melhor.

 

Sendo assim, farei o possível para contextualizar alguns fatores sem estragar a sua experiência, torcendo para que você termine de ler o texto e vá correndo para o cinema mais próximo. Podemos dizer que ‘Fragmentado’ é um filme sobre traumas e medidas que precisam ser tomadas de maneiras drásticas, de certa forma semelhante a ‘Corpo Fechado’ (outro filme do diretor), não sendo à toa o fato de que os pôsters dos filmes tenham algumas semelhanças.

Há vários filmes sobre transtorno ou dupla personalidade. Um dos meus favoritos é o também suspense ‘Identidade’, dirigido por James Mangold, com John Cusack e Ray Liotta no elenco. Neste filme, uma série de assassinatos ocorre numa noite chuvosa em um motel de beira de estrada, enquanto um paciente acusado de vários assassinatos tem seu julgamento adiado porque sua defesa alega um distúrbio psiquiátrico no paciente.

Não há tanta semelhança entre os dois filmes com relação a estilo, pois ‘Identidade’ se aproxima muito mais de um slasher enquanto ‘Fragmentado’ transita mais na área do drama psicológico, mas ambos causam a mesma sensação de impotência e uma curiosidade incontrolável no espectador para entender o que está acontecendo e querer saber como tudo vai acabar. São filmes que nos fazem ‘sofrer’, mas gostamos, porque no fundo queremos viver essa experiência com o máximo de intensidade possível, no conforto das nossas cadeiras, é claro.

Shyamalan, que mais uma vez escreve e dirige o filme, é um mestre do suspense, isso não há dúvidas. Clássicos como ‘O Sexto Sentido’, ‘Sinais’ e ‘A Vila’ ou o mais desconhecido do povão ‘Corpo Fechado’ (meu favorito dele, inclusive) são provas mais do que suficientes de que ele realmente domina o gênero. Embora tenha seus tropeços na carreira – que não convém serem citados aqui -, seus filmes são tomados por uma atmosfera absolutamente indescritível e contagiante. E ‘Fragmentado’ pode ser sua obra-prima em quase duas décadas desde que chocou o universo cinematográfico pela primeira vez.

O roteiro e a maneira como ele filma são extremamente inteligentes, pois não sabemos onde estamos e o que está acontecendo tanto quanto as próprias vítimas. É o diretor nos deixando apreensivos nos colocando na ‘pele’ das garotas sequestradas. E há sempre aquele elemento da dúvida, como acreditar em uma luta interna de Kevin com suas outras personalidades? Como eu mencionei anteriormente, muitas pessoas não acreditam nesse transtorno.

Será mesmo que duas pessoas completamente diferentes podem coexistir no mesmo corpo? Quantas vezes nós fingimos que ‘somos’ outras pessoas para evitar passar por experiências ruins que já conhecemos ou vivenciamos anteriormente? Muitas vezes, acabamos absorvendo o ambiente a nossa volta como um mecanismo de defesa, mas não quer dizer que nos tornamos pessoas diferentes.

Embora seja um tema muito instigante, se uma história como essa tivesse caído nas mãos de um diretor sem metade da criatividade ou talento de Shyamalan, certamente ‘Fragmentado’ não seria um terço do grande filme que é. No entanto, o elemento-chave para o filme funcionar completamente tem nome: James McAvoy.

A atuação de James aqui é um absurdo. Como esperado, ele interpreta personalidades tão diferentes, com características extrovertidas, passivo-agressivas, toc, obsessão por limpeza, imaturidade, inocência, brutalidade e etc. O ator flutua entre essas pessoas com uma naturalidade incrivelmente assustadora, as tornando extremamente plausíveis, algumas vezes em questão de segundos, na mesma cena – como em uma das visitas com a doutora que cuida dos seus casos.

Você consegue perceber qual pessoa está em cena somente por sua brilhante expressão facial, por meio de sutilezas como arquear as sobrancelhas ou pela forma de sorrir. Não me surpreenderia com uma indicação ao Globo de Ouro, por exemplo. E também não poderia deixar de mencionar o fundamental restante do elenco. Betty Buckley tem uma performance espetacular como a doutora Karen Fletcher e Anya Taylor-Joy – que já havia me conquistado em ‘A Bruxa’ – tem outra performance extremamente expressiva e confiante.

Há uma palavra para descrever o primor técnico de ‘Fragmentado’: sagacidade. Shyamalan declarou que não tinha condições de contratar profissionais financeiramente inviáveis para o projeto (o filme custou ‘míseros’ $9 milhões de dólares). Sendo assim, ele foi buscar o promissor diretor de fotografia Mike Gioulakis, do terror ‘Corrente do Mal’ e o compositor West Dylan Thordson, que havia composto trilhas adicionais para ‘Foxcatcher’.

O resultado dessa mão-de-obra boa e barata foi fazer um filme intimista que consegue envolver completamente o espectador em sua atmosfera. Muitas vezes, o silêncio é usado para acentuar o suspense. Em outros, a trilha alterna um piano melancólico, de notas tocadas pacientemente, mas que vão aumentando o ritmo quando algum perigo parece se aproximar, com instrumentos mais experimentais, lembrando bastante o que Jerry Goldsmith fez em ‘Alien’.

Quanto à fotografia, os planos fechados, corredores apertados e cômodos pequenos só aumentam a sensação de claustrofobia. E intensificam o fato das vítimas e do público não saberem o que está se passando lá fora, assim como Jeff Cutter fez no recente ‘Rua Cloverfield, 10’ e agregou demais à atmosfera e tom misterioso do filme.

Creio que não há muito mais a dizer sobre um dos melhores filmes de 2017 sem entrar em detalhes da trama, portanto, só reforço que este é o verdadeiro retorno que esperávamos de M. Night Shyamalan aos grandes suspenses do cinema. E aos fãs da filmografia do diretor, se atentem aos detalhes, pois isso enriquece muito a experiência de assistir ao filme (nem Kanye West está lá por acaso…). Vale lembrar que já houve um caso real com o mesmo distúrbio de Kevin, o condenado Billy Milligan, que também sofria de 24 personalidades.

Dito tudo isso, ‘Fragmentado’ realmente comprova que quem talento não esquece da noite para o dia e Shyamalan volta a brilhar com a ajuda de James McAvoy e cia. A escolha do diretor de usar a câmera muito próxima dos rostos dos personagens funciona completamente, pois este é essencialmente um filme de atuação, de personagem e Shyamalan, como grande diretor de atores que é, consegue extrair o máximo do que tinha em mãos. Quanto a mim, continuarei sempre exaltando as mentes originais, ousadas e apaixonadas como ele, que fazem do cinema essa coisa mágica e maravilhosa que tanto amamos.

E você, já assistiu ou está ansioso para ver? Concorda ou discorda da análise? Deixe seu comentário ou crítica (educadamente) e até a próxima!




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