O mais relevante em “Grandes Olhos/ Big Eyes” (2014) de Tim Burton é o próprio diálogo metalinguístico entre a sua obra e a de Margaret Keane. O diretor de “Eduard Mãos de Tesoura/ Edward Scissorhands” de 1990 é inquestionavelmente um ícone “cult” do cinema e já foi sucesso de bilheteria com “Batman” (1989) e “Batman o Retorno/ Batman Returns” de 1992, mas nunca foi unanimidade de crítica. Os quadros com olhos grandes de Keane tem uma trajetória muito parecida, mostrando que os dois não compartilham apenas o fato de serem californianos. Por tratar-se de um filme biográfico, o mais recente trabalho de Burton assemelha-se mais a Ed Wood (1994), do que com suas produções fantásticas, apesar de não trabalhar com um material tão excêntrico desta vez.
Margaret divorciou-se do primeiro marido e fugiu do lar, tendo que trabalhar desenhando em móveis para sobreviver e sustentar a filha. Nos finais de semana ela pintava retratos, que tinham sempre como característica principal olhares enormes e expressivos, em troca de alguns trocados para complementar a renda e exercitar sua vocação. Após conhecer Walter Keane, aparentemente também um pintor, os dois se casaram. Ao tentar vender seus quadros Keane levava também alguns da esposa, descobrindo que os dela podiam fazer mais sucesso. Porém com o tempo ele começou a atribuir para si a autoria das pinturas de grandes olhos, sobre a justificativa, talvez fundamentada, de que as pessoas não adquiriam quadros pintados por mulheres.
Amy Adams não ter sido indicada ao Oscar 2015 não significa que ela não apresenta uma performance tão boa quanto a de filmes anteriores, mesmo que sua atuação seja prejudicada pelo roteiro. A atriz encarna muito bem a artista que tem seu talento reconhecido financeiramente, mas que por imposição social da época e por conveniência, acaba ficando na sombra do marido. Suas interações com Christoph Waltz são bastante convincentes, encarnando o papel de esposa que confia no parceiro e aceita as suas decisões sem questionar diretamente, mas que vai se sentindo incomodada com o tempo. Mesmo não tendo sido lembrada pela Academia neste ano, ela foi reconhecida pelo Globo de Ouro, ganhando o prêmio de Melhor Atriz em uma Comédia ou Musical, por Big Eyes.
Christoph Waltz é inegavelmente um ótimo ator, mas quando não trabalha com Tarantino exagera em alguns momentos, quase como se esquecesse que necessita passar algum realismo quando interpreta uma pessoa real. Em “Água para Elefantes/ Water for Elephants” e “Deus da Carnificina/ Carnage”, ambos de 2011, suas representações que utilizaram bastante do caricato são aceitáveis por se tratarem de personagens literários, mas como representação de um canastrão Walter Keane passa muito longe do que se espera de um marido dissimulado e opressor. Está longe de ser uma péssima atuação, mas não oferece a carga dramática e em certos pontos violenta, que o longa exigia.
A biografia da pintora é perfeita para se discutir a discriminação sofrida pelas mulheres na sociedade americana e mundial no pós segunda guerra e durante os anos 50 e 60. É óbvio que ela se beneficiou do sucesso que o marido obteve se apropriando do trabalho dela, sem lhe dar nenhum crédito público. Ele era um vendedor excelente, sendo um dos primeiros a ganhar dinheiro licenciando seus produtos para serem vendidos como reproduções baratas. Talvez ela não tivesse saído do anonimato sem as artimanhas dele, mas não deixar que a esposa desfrutasse os louros e as críticas ao seu trabalho em algum momento de suas carreiras é no mínimo egoísta. Muitos vão argumentar que faltou coragem para fazer algo a respeito muito antes, mas é difícil julgar se havia melhores alternativas apenas assistindo o filme. Certamente não eram tempos que tratavam muito bem mulheres divorciadas e mães solteiras que queriam manter a guarda dos filhos. Encontrar um porto seguro na religião provavelmente era o caminho mais óbvio e a ironia do destino quis que ela encontra-se coragem numa doutrina conhecida por limitar algumas escolhas dos seus adeptos.
Grandes Olhos parece iniciar uma nova fase na carreira do diretor, ele se desnudou de suas marcas que atribuíam uma estranheza sombria e curiosa à sua obra, da parceria com Johnny Depp, assim como os grandes orçamentos, chegando a filmar no Canadá para reduzir os custos. Ele vinha de tropeços, como “Sombras da Noite/ Dark Shadows” de 2012 e “Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet/ Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street” (2007), de um discutível “Alice no País das Maravilhas/ Alice in Wonderland” de 2010, acertando o passo em “Frankenweenie” (2012). Big Eyes parece um feliz recomeço e com certeza os fãs que apreciam um amadurecimento na carreira dos artistas vão se manter atentos pelo que vem no futuro de Tim Burton.
Trailer do filme: