Martin Scorsese não precisa falar, com “O Irlandês” ele mostra o que é cinema de verdade

É difícil imaginar que um dia a “Netflix” foi uma locadora de filmes, não é mesmo? Hoje, a pioneira do streaming no mundo pode até estar começando a perder espaço para os serviços das grandes companhias que a copiaram, mas as disputas neste novo mercado estão longe de acabar. E nessa “brincadeira”, a Netflix jogou alto ao trazer Martin Scorsese e Robert De Niro para produzirem um longa para a plataforma. “O Irlandês” é um filme baseado no livro de memórias do advogado Charles Brandt (“I Heard You Paint Houses”), que narra o caso real de Frank “The Irishman” Sheeran, sindicalista dos anos 70 que tinha fortes ligações com o crime organizado.

O roteiro é uma adaptação de Steven Zaillian, grande cineasta que foi responsável pelo roteiro de filmes como a “A Lista de Schindler” (1993) e “Missão: Impossível” (1996). Zaillian tinha um trabalho original pesado para adaptar, com muitos anos de uma história complexa, mas consegue fazer isso de forma brilhante trazendo o que muitos chamam de “vai e vem na história”, que em “O Irlandês” é fundamental para inserir o espectador no contexto da trama e propiciar que laços sejam criados entre os personagens e quem os assistem. É muito interessante a visão sobre o crime que o roteiro de Zaillian associado com a direção de Scorsese trazem para a tela. Coisas horríveis podem acontecer em tela, mas nada aproxima o público das calamidades, e em nenhum momento existe a incitação da violência (alô Todd Phillips, estou falando com você e seu filme irresponsável). Existe uma responsabilidade por parte dos cineastas em trabalhar com o tema, que inclusive está inserido em acontecimentos reais, e por mais delicadas que sejam as situações, não há intenção de polemizar ou esfregar na cara do público uma ideologia (Oi Todd Phillips, sou eu de novo).

Crime é um tema frequente na carreira de Scorsese, que já nos trouxe grandes filmes do gênero e não há dúvidas que o diretor sabe trabalhar isso como ninguém. As mortes em seus filmes são orquestradas como grandes sinfonias, e os enquadramentos que Scorsese escolhe para cada uma delas nos indica a importância delas para os personagens, criando uma obra verdadeiramente rica que sem dúvida pode se dar ao direito de ter três horas e meia de duração. Cada movimento da câmera tem sua razão e é muito bem pensado para que os atores tenham o maior destaque possível em cada cena.

Confesso, caros leitores, sinto-me intimidado em comentar a atuação destes veteranos e não encontro palavras para enaltecer ainda mais o talento deles. Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci nasceram para interpretar papéis do gênero e mesmo que tenham talento o suficiente para migrarem para outras categorias de filmes, é visível o prazer e a naturalidade que eles trazem para seus papéis. O longa traz em seu roteiro a passagem de um longo período de tempo, e assim De Niro e Pesci têm cenas na quais foram rejuvenescidos digitalmente, bem como cenas que foram envelhecidos. Esses recursos tornam a produção única, e quase como uma grande homenagem a carreira desses atores icônicos.

Outra homenagem que o filme traz está sutilmente presente na trilha sonora, que em alguns momentos traz algumas notas do tema de “O Poderoso Chefão”, envolvendo ainda mais o público com a história que está sendo contada.

Martin Scorsese recentemente deu algumas polêmicas declarações sobre o que considerava cinema, e talvez se mais pessoas pensassem como ele, nós não teríamos tantos filmes na nossa categoria “Houston We Have a Problem”. O cinema é uma arte, e como toda arte, também foi corrompido pelas massas. Os Vingadores podem até atrair mais público e serem mais rentáveis, mas jamais chegarão aos pés de uma boa história, tão bem escrita e dirigida como “O Irlandês”. Caso tenham a oportunidade, assistam ao filme no cinema que, antes de chegar a Netflix no dia 27, terá sessões em cinemas selecionados entre os dias 14 e 20 de novembro.

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