Talvez a obra mais conhecida do escritor grego Sófocles seja a peça “Édipo Rei”, que posteriormente se tornaria um dos conceitos fundamentais da psicanálise para Freud e já inspirou de certa forma alguns filmes, como por exemplo, ‘Chinatown’ (1974). Mas há outra peça do dramaturgo chamada “Antígona”, que é igualmente capaz de levantar uma relevante questão a ser discutida: “Devemos obedecer antes a lei divina ou a lei dos homens?”. Na peça, Antígona quer enterrar de forma digna e de acordo com suas crenças o corpo do seu irmão Polinice. Entretanto, este desejo vai contra a vontade do Rei Creonte, que havia determinado que o corpo de Polinice deveria ficar exposto às aves e aos cães. Sabendo que não havia nenhuma lei dos deuses que a impedisse de seguir suas crenças, além de um capricho do rei, Antígona decide ir até o fim e proporcionar um sepultamento digno para o seu irmão.
Mesmo com algumas claras semelhanças com a peça “Antígona”, o diretor de ‘O Filho de Saul’ Lázló Nemes afirma que, juntamente com sua co-roteirista Clara Royer, não haviam pensado em fazer um filme inspirado na peça de Sófocles, apesar de reconhecer que a essência de ambas as histórias é a mesma, bem como a motivação de seus protagonistas. Neste drama situado próximo ao fim da Segunda Guerra, Saul (Géza Rohrig) é um dos prisioneiros responsáveis por queimar os corpos dos mortos pelas câmaras de gás, além de precisar limpar o local para a chegada de mais e mais corpos para a execução. Obviamente, lá não é um lugar para sugestões ou pedidos, mas ao ver o corpo de um jovem garoto, Saul decide pedir ao médico a chance de sepultá-lo de acordo com sua crença judaica, afirmando que o mesmo é seu filho. Fica dividido, portanto, entre participar de uma resistência que surge entre os prisioneiros ou seguir a idéia extremamente arriscada de enterrar o garoto, pois para fazer isso direito, ele precisa encontrar um rabino que o ajude.
Ciente de que não há glamour nenhum nas atrocidades de um campo de guerra, algumas escolhas do diretor ajudaram o filme a ganhar uma visceralidade extremamente íntima, como se o espectador estivesse na “pele” do protagonista. Algo que de imediato já fica bem claro ao observador mais atento foi a escolha de filmar em um formato mais “fechado” que o cinema amplo convencional (1.37:1 ao invés do tradicional 2.35:1). Durante um dia e meio em que acompanhamos Saul e sua história, a câmera praticamente não sai do rosto do protagonista, alternando momentos onde vemos suas reações com literalmente seu ponto de vista na trama (o que ele vê). A lente escolhida cria uma sensação de pouca profundidade nas imagens, como se emulasse o limitado campo de visão de um ser humano e mesmo que não vejamos tudo por conta deste campo de exposição limitado, as lamúrias e a agonia de quem está sofrendo ali ecoam nos ouvidos, se aproveitando da intencional “falta” de trilha do filme, mostrando o verdadeiro inferno que é aquele lugar, sendo que além disso, nas cenas externas filmadas foram utilizadas apenas a luz natural ambiente. O resultado de tudo isso é um dos retratos mais realistas e intensos de um campo de concentração na história do cinema, talvez superando até filmes consagrados como ‘Império do Sol’ (1987), por exemplo.
Géza Rohrig, um poeta húngaro que vivia nos EUA, foi convidado para um teste pelo seu amigo e diretor Nemes para um papel de apoio no filme, e apesar de não atuar desde o final da década de 80, quando participou de uma produção para a TV, impressionou tanto que acabou ficando com o papel de Saul no filme. E sua atuação é impecável. Com seu jeito calado, Rohrig consegue entregar um personagem misterioso e obstinado, que não tem controle de tudo à sua volta, uma combinação que caiu como uma luva para o filme. O restante do elenco é bastante eficiente e a produção, fotografia e parte técnica, embora tenham um ar rústico e minimalista, detalham e decoram muito bem o ambiente onde a trama se passa. Apesar de ser o longa-metragem de estréia do diretor, este estilo de câmera focada no protagonista vem desde seus curtas do início da carreira, e demonstram o domínio desta técnica de filmagem por parte de Nemes.
O ponto central do filme, que se conecta com a questão filosófica de Antígona, pode ser interpretado como uma redenção para Saul. O filme deixa muito à interpretação, e é claro que não vou revelar spoilers, mas há um dilema moral que Saul enfrenta, entre a lealdade à sua causa ou a consideração ao bem-comum, de ajudar seus companheiros a escaparem daquele terror sem fim. Em um drama como este, as escolhas têm um peso muito grande e irreversível, e isso não vale apenas para o nosso protagonista. Como filme de estreia, o trabalho de Lázló Nemes é extremamente surpreendente e preciso. Fica claro que o diretor sabia exatamente o que queria extrair do projeto, com um “plot” simples e conciso, mas um roteiro bem amarrado e uma direção muito segura. Quando eu acreditava que a Segunda Guerra já havia esgotado todas as possibilidades no cinema, ‘O Filho de Saul’ surge como um dos melhores filmes na história sobre o tema, um retrato íntimo e intenso sobre até onde um homem pode ir para ser leal às suas crenças e fazer o que acha que é certo mesmo quando tudo parece perdido. Um futuro clássico do gênero com certeza.