Mesmo com as interessantes vitórias de Assunto de Família (2018) e Cafarnaum (2018) no Festival de Cannes do ano passado, o verdadeiro foco – e surpresa –  estava no incógnito e misterioso longa O Homem que Matou Dom Quixote. Apesar do proveito do clássico personagem de Miguel de Cervantes, o filme já era interessante e comentado entre críticos e amantes do cinema antes mesmo de ser assistido. Muito da curiosidade se deve pela complexa produção, que provocou um atraso de exatos 29 anos desde o momento em que Terry Gilliam teve a ideia para a adaptação.

Nessa complicada jornada, o cineasta americano enfrentou de tudo, desde ter o set inundado na primeira semana de gravações, ter seu ator principal da época (Jean Rochefort) diagnosticado com dupla hérnia de disco até perder o licenciamento para a produção do filme. Isso sem contar da troca de elencos, que, inicialmente – em 1999, para ser exato – contava com Johnny Depp e Rochefort até passar para Ewan McGregor e Robert Duvall.

No fim, com todo o azar, John Hurt foi escalado para viver Quixote, porém, um ano depois da escolha, o ator é diagnosticado com câncer, que o matou em 2017. E não foi só isso, já que a produção consegue estabelecer seu elenco em 2016, mas sofre com o descumprimento de pagamento do produtor Paulo Branco, além do fato que, durante as filmagens, em 2017, a equipe foi acusada de danificar um convento – considerado patrimônio histórico pela Unesco – em Portugal. Em 2018, finalmente, a estreia do filme é anunciada em Cannes, mas Branco ainda entrou na justiça tentando impedir a exibição, – por considerar dono do projeto.

Neste ponto, o longa vende uma curiosidade só por toda a jornada, algo parecido com que aconteceu com Boyhood: Da Infância à Juventude (2014), apesar das claras diferenças. No entanto, há uma determinada semelhança entre as duas produções que é o fato do resultado ser inferior à curiosidade do projeto, ainda que haja uma superioridade na obra de Richard Linklater.

Aqui, os 29 anos de curiosidade são entregues através de uma obra pobre de espírito, mas que se esforça dentro de seu limite. Inclusive, esforço é o que não falta em O Homem que Matou Dom Quixote, tanto da própria produção, como também do elenco. Gilliam – que também assume o roteiro – demonstrou boas intenções com sua versão, criando situações que remetem às dificuldades da produção – incluindo uma narrativa que retoma momentos tratados no documentário Perdidos em La Mancha (2002) – e uma bela história sobre o ciclo cultural da jornada de Quixote.Entretanto, nada chega a ser marcante.

Nem é possível dizer que a expectativa criada a partir da curiosidade é o principal motivo da falta de qualidade do longa. Muito porque Gilliam, com todos os embates durante os 29 anos, perdeu-se em sua própria narrativa. O filme até trata, em seus primeiros atos, temáticas interessantes, que exibem, de maneira cômica, os delírios de uma produção cinematográfica de grande orçamento, fazendo um próprio paralelo com a situação passada por Gilliam. No entanto, o roteiro vai se perdendo, não conseguindo um bom desenvolvimento narrativo e o próprio humor não embala, sendo, em diversos diálogos, vergonhoso. O que torna curioso, vindo da mente por trás dos clássicos Monty Python em Busca do Cálice Sagrado (1975) e Monty Python – O Sentido da Vida (1983).

A intenção primária de Gilliam é realmente boa ao trabalhar uma metalinguagem envolvendo a própria situação, mas há um certo exagero incômodo em seus personagens, que acabam perdendo o brilho, principalmente Jonathan Pryce. Na pele de Quixote, ele é a representação clara de uma análise cômica de Gilliam sobre atores que vivem seus personagens mesmo fora das gravações. Até mesmo Adam Driver não foge disso na pele de um excêntrico diretor que se transforma ao retomar sua essência artística. Por mais que acha uma qualidade na intenção, Gilliam não soube como controlá-los em sua história. Por sua vez, tanto Pryce quanto Driver entregam interpretações respeitáveis, por mais ruim que sejam seus textos. Sobre a entrega, os dois são os que mais chamam a atenção diante todos os personagens, com interpretações maduras, mas que, infelizmente, são diminuídas diante um texto fragilizado.

Esses pontos fazem da espera de O Homem que Matou Dom Quixote uma decepção, além da percepção de desperdício e de confusão na própria narrativa. Apesar da curiosa história e de pontos positivos na proposta, a produção é uma longa e triste consequência do caos.

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