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O diretor belga Jaco Van Dormael já havia causado um impacto na sua estreia em longas-metragens com o filme “Um Homem Com Duas Vidas” (1991), que foi indicado ao Bafta e premiado em Cannes e no César (o “Oscar” francês). Mas atingiu uma certa reputação a nível mundial anos depois, com o cultuado “Sr. Ninguém” (2009), um misto de drama e fantasia protagonizado pelo astro Jared Leto. Em ‘O Novíssimo Testamento’, Van Dormael retorna às suas origens, resgatando seu estilo cômico provocativo, porém sensível e até de certo modo ‘adocicado’. Portanto, o espectador pode esperar um filme mais descontraído e nada de uma grande produção, mas um trabalho independente e um tanto ousado, eu diria.

Le tout nouveau testament

No filme, Deus mora na Bélgica, e é interpretado pela forma de um homem (Benoît Poelvoorde). Ele é casado com uma esposa submissa e sem personalidade alguma (Yolande Moreau) e pai de dois filhos, Jesus, que não vive mais com ele e Ea (Pili Groyne), uma jovem garotinha bem oposta à sua mãe, questionadora e curiosa. Ea também não concorda com a forma que seu pai governa o mundo, pois ele age como se os seres humanos fossem brinquedos, os quais ele manipula e se diverte com as tragédias que elabora em um computador antigo num quarto de sua casa.

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O filme pode não agradar a todos por tocar em um assunto ainda delicado de se debater: a religião. Ao pressupor e satirizar que nosso sofrimento na terra aconteça por um motivo aleatório, mas já pré-definido e o fato de que a sociedade em que vivemos é tão falha e cruel por sermos feitos à semelhança de Deus – uma discussão que vai muito além do belo “hit” de sucesso dos anos 90 ‘One of Us’, de Joan Osbourne -, certamente o filme não deverá ser bem aceito pelo público mais conservador. Por outro lado, a personagem carismática e ingênua de Ea, ameniza essa epigrama religiosa, como um ser inocente e questionador que nada mais quer do que descobrir como as pessoas fazem para sobreviver a este mundo caótico, sendo a única que sabe que poderia haver um lugar muito melhor para se viver, caso seu pai “governasse” de forma mais responsável e amorosa.

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Ao longo de mais de um século de sua existência, o cinema já nos presenteou com várias obras interessantes que levantam essa discussão sobre religião e divindade, desde filmes mais sérios como ‘A Palavra’ (1955), de Carl T. Dreyer, que levantava a questão de se Jesus estivesse aqui na Terra andando entre nós e porque as pessoas acreditam no Cristo morto, mas não no vivo, até sátiras como ‘A Vida de Brian’ (1979) ou ‘O Todo-Poderoso’ (2003), e talvez seja algo inexplicável, mas passado todo esse tempo, fazer um filme como este ainda é considerado tabu hoje em dia.
O ponto de ruptura no filme acontece quando Ea consegue atrapalhar a rotina maquiavélica de seu pai, obrigando-o a sair do seu “paraíso” para correr atrás dos seus poderes de volta e do controle do universo, aqui entre os homens comuns. Começam então, algumas situações cômicas que proporcionam algumas risadas autênticas. Aliás, o tom do filme é bem agradável e remete a um clássico da fantasia chamado ‘O Fabuloso Destino de Amélie Poulain’ (2001). Como algo já idiossincrático do cinema europeu, os cenários, caracterizações de personagens, diferentes ambientes do filme, são muito “artísticos” e bonitos ao seu modo, fugindo do padrão tradicional hollywoodiano que muitas vezes estamos habituados, e isso é um ponto positivo. A montagem e a trilha sonora são espetáculos à parte, ao passo que uma mantém o ritmo técnico do filme, a outra contribui de uma forma muito mais requintada, usando e abusando de clássicos como Haendel, em alguns mini clipes que são exibidos aliando a trilha com a narrativa, conseguindo emocionar com sequências belíssimas. Além da trilha que ambienta o filme, que emprega com maestria a utilização de pianos e violinos suaves, e de certa forma remete a alguns trabalhos mais sensíveis de compositores clássicos como Bernstein, por exemplo.

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O elenco principal é bastante enxuto – devido ao fato de que Ea e Deus sejam os protagonistas – há muitos coadjuvantes de peso igual para a trama e que cumprem bem seus papéis, com um ligeiro destaque para Catherine Deneuve, que não está brilhante, mas consegue passar credibilidade à sua personagem, e as cenas que requerem uma interpretação mais melancólica e dramática são de sua responsabilidade. O Deus de Poelvoorde não convence muito, talvez por ser um personagem que provavelmente cada espectador tenha um ponto de vista muito particular, mas dentro da proposta do próprio filme, ainda lhe falta algo, não funciona como comédia e não tem a “força” antagônica que poderia tornar o filme mais interessante. A garotinha Pili Groyne, que já havia aparecido em ‘Dois Dias, Uma Noite’ (2014), está muito bem e consegue expressar o carisma que compõe sua personagem sem ser impertinente, o que é uma linha muito tênue.

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De forma geral, ‘O Novíssimo Testamento’ é digno de ser visto em uma sala de cinema. A crítica é suave, faz o espectador mais pensar do que revolucionar, mas o tom do filme é bastante agradável e é uma oportunidade para quem quer ver algo diferente do convencional. Por mais que não funcione completamente como comédia nem como uma obra memorável por sua sagacidade, o filme busca os caminhos da fantasia para colocar em foco novamente uma questão que está no ar há muito tempo e que ainda se encontra muita resistência ao entrar no assunto. Sustentado por uma direção segura de Van Dormael, a pureza de intenção da personagem de Ea e o deslocamento de Deus entre os seres humanos, conseguem sustentar o interesse até o final do filme.

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