Ainda Temos o Amanhã
Director
Paola Cortellesi
Cast
Paola Cortellesi, Valerio Mastrandea, Romana Maggiora Vergano
Writer
Furio Andreotti, Giulia Calenda e Paola Cortellesi
Company
Pandora Filmes
Runtime
118 minutos
Release date
04 de julho de 2024
“Ainda Temos o Amanhã” é um daqueles filmes que te acertam em cheio e você nem sabe de onde veio o golpe. Ambientado numa Itália pós-guerra e filmado inteiramente em preto e branco, é um ótimo exemplo de como uma direção com intenção e consciência pode contar uma história contundente sem precisar de milhões de palavras. Paola Cortellesi dirige e estrela (além de ser co-roteirista) esse drama com toques sutis, mas muito bem-vindos, de comédia que, apesar de falar de um momento específico da história, se encaixa tão bem em tantos contextos e para tantas realidades até os dias de hoje. É raro encontrar uma direção que conduza de forma tão original uma história relativamente simples e já contada, provando que o cinema sempre encontra novos meios de se reinventar, sobretudo quando damos espaços para novas vozes e novos pontos de vista.
Em sua estreia na direção, Paola Cortellesi escolhe uma família de classe baixa numa vila tipicamente italiana para falar da transformação política promovida pela legalização do voto feminino. A família em questão é constituída por três filhos, dois meninos mais novos e uma menina, Marcella (Romana Maggiora Vergano) mais velha, perto de entrar na fase adulta, um avô doente chamado Ottorino (Giorgio Colangeli), o pai e marido abusivo Ivano (Valerio Mastandrea) e a matriarca Delia (Paola Cortellesi). Eles são uma família, infelizmente, tradicional da época, onde todas as responsabilidades relacionadas aos cuidados da casa e dos filhos eram exclusivamente da mulher; para piorar, Ivano é um marido agressivo e cada ato falho de Delia considerado falho é compensado com violência física. O relacionamento é tão ruim, e a violência tão explícita, que todos sabem o que acontecem na casa e Delia é constantemente seguida por olhares de pena pela vizinhança, mas nenhum ato de ajuda lhe é oferecido. Até mesmo Marcella, a filha, sabe o que acontece e cobra uma atitude da mãe, mas seu inconformismo soa como desprezo, tornando a experiência de Delia ainda mais solitária.
Apesar do tema nada agradável e da vida pesada de Delia, não é assim que a personagem encara sua realidade e a direção de Paola nos entrega uma outra perspectiva também. Em momento algum Delia parece irreparavelmente triste ou desesperançosa, principalmente quando está fora de casa. Ela ainda trabalha (vários pequenos trabalhos que lhe garantem uma pequena autonomia, ainda que escondida), mantém amizades, se permite novas interações e sonhos, ainda que seus recursos sejam escassos em todos os sentidos. A personalidade de Delia e a forma como encara a vida e seus obstáculos está refletida na direção de Paola e sua comédia pontual, mas certeira. Em uma cena em que Delia apanha do marido, o que vemos explicitamente não é a violência, mas uma dança acompanhada de uma trilha sonora sugestiva – como a própria Delia prefere encarar as mazelas de sua vida.
Quando aparece para Marcella uma oportunidade de mudar de vida, através de um marido mais abastado, aparece também a oportunidade de mudança para toda a família, mas nem sempre como o esperado. A relação de Marcella e Delia, apesar de arredia e faltando afeto no modo mais tradicional, é o retrato perfeito da experiência feminina, tanto no pós-guerra quanto agora; é um relacionamento pautado nas experiências e na realidade em que estavam inseridas, sem idealizações ou ilusões e o resultado é algo genuíno e comovente, que não pode ser ignorado. O roteiro também faz seu trabalho ao criar uma narrativa concisa e leve, contrastando a temática e a vida da família central, as risadas nos momentos mais inesperados são sempre bem-vindas, assim como os momentos mais densos funcionam igualmente bem. O final do filme, sem spoilers, consegue desvendar uma nova camada da história, que consolida seu teor político, mas com a mesma sutileza e força silenciosa de todo o restante.
Por Júlia Rezende