A ideia de distopia tem sido uma ideia bastante trabalhada em diversas obras fictícias ao longo dos anos – seja em filmes, séries de televisão, livros ou até mesmo histórias em quadrinhos. Normalmente a própria ideia distópica é imediatamente relacionada a personagens vivendo em um futuro distante, onde o mundo é, de certa forma, injusto, ao mesmo tempo em que os personagens entendem os maiores perigos desta realidade e se esforçam para alterá-la de alguma forma – seja em filmes mais antigos como “Metrópolis” (1927), até em produções mais recentes como “Jogos Vorazes” (2012). Gabriel Mascaro, entretanto, consegue inovar em “Divino Amor”, seu mais recente longa-metragem, apresentando uma obra sci-fi gospel que não está tão distante da realidade quanto desejaríamos, e que, por isso, é capaz de surpreender, encantar e, ao mesmo tempo, chocar o público de diversas maneiras.
O Brasil de 2027, apresentado na obra, é estritamente religioso, tendo como principal evento anual a festa do Amor Supremo. Assim, logo no início do filme, entendemos a forte relação que o Estado possui com a religião daquela realidade, mesmo que o país ainda seja considerado laico. Um ponto importante se observar em “Divino Amor” é que o ano escolhido para representar um Brasil bastante avançado tecnologicamente e repleto de néon é bastante próximo do presente (oito anos após seu lançamento), o que nos ajuda a entender a proximidade entre a nação apresentada no filme e o país no qual estamos vivendo atualmente.
Diferente do padrão de distopias que vemos tanto no audiovisual quanto na literatura, a protagonista Joana (interpretada brilhantemente por Dira Paes) enxerga uma utopia dentro desta realidade distópica, diferente do espectador, que entende suas falhas e defeitos logo no início do filme. É aí que enxergamos a coisa mais importante para Joana: sua fé, que acaba se tornando a ferramenta que conduz a narrativa do filme.
Engana-se, entretanto, quem acredita que o filme é uma simples afronta à religião. Pelo contrário, “Divino Amor” apresenta a fé como algo bastante importante, genuíno e puro, capaz de guiar a vida de uma pessoa e dar-lhe conforto e, além disso, um propósito. Gabriel Mascaro tenta – a partir de uma premissa bastante simples mas, ao mesmo tempo, profunda – criticar o abuso de poder de instituições religiosas e abordar os limites morais de tais instituições, discutindo sobre até onde podem ir para conseguir fiéis e, além disso, mantê-los. Por fim, o diretor questiona se tais ideologias estão realmente prontas para seguir aquilo que pregam que virá, indicando que a fé, em seu estado mais puro, deve ser mais importante que uma instituição religiosa como um todo.
Tanto a fotografia quanto a direção de arte do filme são outros fatores que devem ser exaltados, visto que apresentam um mundo de cores néons que prende o espectador até o final da história. Os movimentos de câmera e enquadramentos também são feitos com incrível harmonia, guiando o olhar do espectador e, assim, sua atenção. A direção opta também por mostrar algumas cenas de forma extremamente simples, sem censura e crua – as quais talvez peguem o espectador de surpresa – mas que cumprem muito bem o propósito de chocar o público e gerar uma sensação de desconforto.
“Divino Amor”, portanto, obtém sucesso em construir uma distopia que leve a uma severa reflexão acerca da religião e do seu papel na sociedade, apresentando atuações extremamente satisfatórias e uma direção de fotografia que faz valer o filme por si só. Vale ressaltar que a obra também possui uma identidade bastante clara, como também uma proposta extremamente cativante, profunda e, atualmente, necessária. Por mais difícil que pareça criar uma espécie de distopia sci-fi, gospel e brasileira, Gabriel Mascaro foi o diretor certo para o trabalho, desenvolvendo o que pode muito bem ser considerado, por muitos, como um dos melhores filmes nacionais do ano.