Sicario - Terra de Ninguém

O diretor canadense Denis Villeneuve já escolhia argumentos “pesados” para seus filmes, antes mesmo de produzir seus longas-metragens em Hollywood. Foi assim com ‘Polytechnique’ (2009), que retratava o massacre da Escola Politécnica de Montreal que ocorreu em 6 de dezembro de 1989 (o Columbine canadense, ainda que tenha ocorrido dez anos antes), filme tão bom e cruel quanto o do consagrado cineasta Gus Van Sant, ‘Elephant’ (2003). O longa-metragem ‘Incêndios’ (2010) que o destacou internacionalmente, rendendo até indicação no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2011, também não poupava o espectador, com seu “plot twist”, que causava dois sentimentos sobre a obra, ou você a amava ou a odiava. Sua abordagem narrativa poderia ser considerada, um tanto sádica, não fosse à vida real muito mais trágica do que a ficção.

Seu curta ‘Next Floor’ (2008) já demostrava que sua intenção era literalmente “embrulhar o estomago” de quem assiste seus audiovisuais. Seu primeiro trabalho nos Estados Unidos ‘Os Suspeitos’ (2013) gerou o mesmo desconforto, com sua temática e sua eficácia em nos causar aflição ao ver a aparência dos machucados infligidos por Hug Jackman em Paul Dano. E por trás de toda a violência gráfica que ele nos apresenta, sempre existem diversas camadas de significados simbólicos e críticos. Isso ficou ainda mais evidente com sua adaptação do livro de José Saramago (O Homem Duplicado), ‘Enemy’ (2014), que é seu longa-metragem mais metafórico e abstrato, mas não menos crítico, tenso e com um suspense que desafia o público.

Sicário 1

‘Sicário – Terra de Ninguém’ segue a mesma linha, de não proporcionar um alívio para quem o assiste, pois você não tem como sair alegre e indiferente da sessão. É realista e deixa bem claro que não existem heróis na guerra entre governos e o tráfico de drogas. Indicado ao Oscar 2016 de Melhor Fotografia, Melhor Edição de Som e de Melhor Trilha Sonora é provável que o público mais alienado sobre o tema, o julgue surreal após assisti-lo. No entanto, quem assistir, também, a outro concorrente ao Academy Awards deste ano, só que na categoria de Melhor Documentário, ‘Cartel Land’ (2015), vai descobrir que ‘Sicário’ é apenas um recorte de uma realidade muito pior.

As referências/inspirações em ‘Traffic: Ninguém Sai Limpo’ (2000), podem ser consideradas até explícitas, principalmente por causa da presença de Benício Del Toro, quase que numa continuação do seu personagem do filme de Steven Soderbergh. Aliás, o elenco e as atuações são alguns dos pontos fortes do longa. Além de Del Toro, que é responsável por representar o personagem misterioso, com um passado trágico em busca de vingança. Emily Blunt encarna satisfatoriamente a policial jovem e competente, mas que não faz ideia da brutalidade do mundo com o qual está se envolvendo, onde ela é o elo para que o espectador entenda o que está acontecendo na história, pois vemos a sua perplexidade e desconhecimento diante dos fatos que está investigando. E Josh Brolyn transmite toda a sensação de quem já convive há tanto tempo com a violência, que já sente prazer com ela.

Sicário 2

A fotografia do experiente Roger Deakins (‘Os Suspeitos’ e ‘007 – Operação Skyfall’) é composta de uma palheta, por vezes tomada de sombras, em outros por tons amarelados em contraste com outras cores, refletindo a atmosfera de um mundo árido, que aliado às tomadas de câmera das cidades quentes e secas do México, na fronteira com os Estados Unidos, nos passa a sensação de que nada de “bom” pode “florescer” naquele ambiente. A saturação das imagens chega a causar uma “náusea visual”, que aliada aos outros recursos narrativos, nunca nos deixam ficar confortáveis. Toda a violência gráfica constrói um mundo opressor onírico, que mais se parece com um pesadelo, no qual somos inseridos logo de início.

A edição de som foi pensada com muita competência, fazendo com que as cenas de ação funcionem muito bem, nos transportando para o meio dos tiroteios, numa simulada tensão de guerra urbana. Quando a personagem principal passa por ambientes claustrofóbicos e de alta carga emocional, nós também compartilhamos suas sensações, embalados por diferentes imagens e áudios detalhadamente escolhidos. Os zunidos das balas atingindo os alvos, as respirações ofegantes, as batidas das portas dos carros, os coturnos nos pisos, nenhum som passa despercebido, mesmo para o espectador mais desatento.

Sicário 3

A trilha sonora de Jóhann Jóhannsson (compositor do já citado ‘Os Suspeitos’ e de ‘A Teoria de Tudo’, entre outros) também foi criada de forma opressiva e claustrofóbica, dando um ritmo frenético, que por vezes nos faz desejar que as cenas tensas acabem logo. As descargas de violência são embaladas por tons graves e incomodativos, que chegam a ser quase doloridos, por culpa de sua habilidade em nos causar aflição. E quando é necessário um hiato sonoro para que o suspense funcione, a trilha se faz notar ainda mais, quando retorna bruscamente para acabar com nossa espera e nos proporcionar mais uma descarga de adrenalina.

E não é apenas de sensações que este mais recente longa de Villeneuve é feito, como em todo filme seu, há sempre muito mais nas entrelinhas e nas camadas que não estão explícitas no roteiro. Ainda que não mostre o ponto de vista dos traficantes, não é uma visão estritamente unilateral do tráfico, pois as críticas não recaem apenas sobre a brutalidade dos cartéis, mas também sobre as questionáveis intenções da intervenção norte-americana, ainda que ele pegue muito leve para o lado dos EUA (paradoxalmente um dos maiores consumidores de drogas ilícitas do mundo), o que já é esperado para um filme produzido em Hollywood. No decorrer dos conflitos, as diferenças entre “mocinhos e bandidos” se embaralham e já não temos para quem torcer e ficamos tão confusos sobre as intensões do “sistema”, quanto a personagem de Emile Blunt.

Sicário 4

‘Sicário’ é um filme capaz de angustiar os espectadores mais “sensíveis” e que geralmente vão ao cinema pelo entretenimento escapista, fazendo-os desgostar do mesmo, dependendo de seu maior ou menor senso crítico. Porém, para os cinéfilos mais experientes, não há como não gostar de toda a sua competência técnica. Seu final é moralmente dúbio, exigindo que o expectador complete-o com sua própria opinião, o que para alguns vai parecer uma falha, para outros é o verdadeiro papel do cinema como forma de arte. Como um de seus próximos projetos, Denis Villeneuve terá o desafio de dirigir a refilmagem/continuação do “clássico” de Ridley Scott ‘Blade Runner’ e sua filmografia até o momento nos deixa, no mínimo, curiosos e esperançosos pelo resultado.




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