Trabalhar fatos históricos no cinema é uma atividade complicada. Há uma necessidade de equilíbrio entre a verdade absoluta e uma construção narrativa cinematográfica. O que não é um erro, afinal, trabalhar fatos em ficção dá uma abertura para romantizações e criações que acrescentam nas ocorrências de determinado período ou na biografia de determinada celebridade. O cinema é recheado de obras que se aproveitam da história de uma pessoa para fazer o público conhecê-la ou só para realmente deixar uma marca definitiva sobre a vida dela. O problema está justamente nesse pensamento que gera um embate entre público e produção. Afinal, um filme não tem a obrigação de transportar a realidade absoluta, mas também não pode vender como uma.

Todos esses fatores englobam milhares de obras, incluindo Tolkien. Neste caso, por sua vez, há uma complicação maior por ser uma figura popular, diferente da história de Alan Turing, retratada em O Jogo da Imitação (2014), por exemplo. Escolher a biografia de John Ronald Reuel Tolkien é aceitar uma missão muito complicada.

Isso são só pela difícil relação com a família – já que há certos receios quanto a adaptações, principalmente vindo de Christopher John – mas também pela extraordinária importância que o escritor, professor e filólogo tem para a cultura pop – graças a criação do universo da Terra Média – e também no círculo linguístico, já que o mesmo era um grande estudioso e entusiasta. E são nesses fatores mais detalhados que Tolkien fere a jornada de J.R.R. como um todo.

É provável que uma parte dos espectadores não tomem conhecimento da jornada de John Ronald (como era chamado pelas pessoas mais próximas) e por isso acabam não percebendo escolhas errôneas feitas pelo roteiro de David Gleeson. Mas, quem acaba tendo certo conhecimento sobre a persona, afasta-se ainda mais da narrativa construída. Isso porque o longa não passa de um recorte da vida do autor, característica comum em cinebiografias de grandes nomes. No entanto, tanto Gleeson quanto o diretor Dome Karukoski não tiveram o verdadeiro cuidado de trabalhar aquilo que era realmente necessário e da forma correta.

O roteiro de Gleeson faz um tratamento interessante em conciliar toda a persona do autor com a amizade e seus relacionamentos com as pessoas. Nisso, ele dá uma importância significativa para a formação e desenvolvimento do grupo T.C.B.S. (Tea Club Barrowian Society) – criado entre seus amigos da escola – e até para sua linda história de amor com Edith. Ainda que o foco esteja na força da amizade e que serviu para a emocionante – mas forçada – conclusão que concilia com o início da escrita de O Hobbit (1937), faltam características essenciais para a formação do caráter do personagem.

Neste ponto, há uma fraca exploração da paixão do jovem britânico por outras línguas e sua admiração para criar suas próprias. Ainda que haja, tudo é feito sem cuidado algum, algo indefensável ao se tratar de uma figura que viveu na base disso. Inclusive, nem o próprio foco narrativo é bem trabalhado.

Da mesma forma que ocorre em O Gênio e o Louco (2019), o longa procura trabalhar tudo, mas, ao mesmo tempo não desenvolvendo nada, forçando determinadas costuras e relacionamentos, além de fugir da própria vivência do autor. Como o fato de não acontecer um bom desdobramento de seu gosto pela leitura de obras folclóricas e fantásticas logo cedo, ou sua longa e forte relação com o catolicismo – que serviu de fundamento para tratamentos de temas como tentação, humildade e clemência em suas obras – ou até mesmo a influência passada pelo seu tutor, padre Francis, quanto ao uso de cachimbo.

Há sim algumas dessas colocações, porém, tudo muito incluído de maneira forçada, pela necessidade de ter, mas sem introduzir naturalmente na narrativa, ou até mesmo, persistir nas mais importantes.

Uma boa opção de Gleeson foi construir uma conciliação da vida pacata de Tolkien com seu período na Batalha dos Somme, na França, durante a Primeira Guerra Mundial. Visualmente, o filme ganha outra força com seus momentos, trazendo mais pontos dramáticos, dando um destaque maior para a direção do finlandês. Neste quesito, o roteiro escolhe utilizar o cenário de guerra como o principal influenciador da inspiração de Mordor e de outras ideologias tratadas nas obras, como poder, industrialização e destruição da natureza. Nisso, as cenas resultam belos momentos visuais, que misturam lindamente a realidade com a fantasia, além de serem os únicos momentos do longa que trazem mais do espírito popular da Terra Média.

Mas, cinematograficamente não é o bastante para sustentar o espectador. Com seus diversos núcleos, um para cada segmento – no caso, amizade, romance e linguística – tudo é realizado de maneira pobre. Sua própria relação com Edith Bratt não consegue encantar. Isso que os dois, na vida real, oferecem uma linda jornada de amor, já que se conheceram bem jovens – sendo ela três anos mais velha – e passaram por altos e baixos, tanto que J.R.R. foi forçado a ficar separado dela por três anos até atingir a alta idade, e ainda assim, reacenderam o amor.

Aqui, a construção precisou tomar medidas diferentes devido ao elenco, já que suas versões mais jovens não sustentavam na interpretação. Ainda assim, Nicholas Hoult e Lily Collins não entregam uma química profunda o suficiente para convencer, mesmo que Lily encante mais. Hoult, nesse ponto, também não consegue convencer na pele do autor, deixando a desejar quanto a toda a essência do britânico – o que pode ser justificado a partir da falta de material de estudo e até da falta de ajuda da família Tolkien. Os pontos agradáveis de atuação estão apenas na relação entre Hoult e Anthony Boyle, Patrick Gibson e Tom Glynn-Carney, representantes do ciclo de amizade. Isso ocorre porque Karukoski consegue estabelecer um tom mais ameno e mais natural entre os quatro amigos, gerando então, uma comoção e admiração por eles, o que funciona para a conclusão mais pautada na força da amizade, como é a primeira obra de J.R.R.

Por mais que os pontos históricos não sejam a principal importância de uma cinebiografia, vide o já citado O Jogo da Imitação, há uma necessidade de uma narrativa respeitosa e coesa quanto a jornada de uma figura significativa. Apesar de Tolkien estabelecer bons momentos, sua produção está longe de ser a verdadeira marca do homem por trás de uma das maiores obras da fantasia e, também, da história.

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