Existe uma necessidade nossa, talvez não universal, pois existem pessoas irritantemente felizes com sua condição social ou afetiva que não sofrem deste mal. O de escapar de nossa própria mediocridade. Desde ‘O Duplo’, livro de Dostoyevski, a literatura já apontava o conflito da dualidade humana, aquele problema que sofremos entre o desejo de felicidade inerente ao ser humano, e sua adequação ao ambiente social, as normas de conduta, e as limitações impostas por nós mesmos, os laços que formamos, ou nossa condição econômica. Portanto, o interessante filme ‘Um Homem Só’ (2016) não aponta para nenhuma novidade, mesmo porque recentemente já vimos ‘O Homem Duplicado’ (Villeneuve), ou ‘Dois Remi Dois’ (Pierre Léon), um adaptado de Saramago e outro, uma livre criação em cima da obra do autor russo.
Mas, mesmo assim, a primeira direção de ficção de Cláudia Jouvin tem bastante caráter, mesmo que emprestando conceitos destas e outras obras cinematográficas, como ‘Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças’ (Michel Gondry), ou até mesmo de ‘Vanilla Sky’ (Cameron Crowe). Parte disto se deve ao fato do roteiro ser mais calcado num humor negro bem caótico, realçado com uma ambientação atemporal, onde em nenhum momento, tanto do figurino, quanto das locações, determinamos época ou lugar. Isso é muito bom, pois coloca a história no nível de fábula moral.
A fotografia primorosa de Adrian Teijido contribui muito para compôr isto, e ainda bem que seu mérito foi reconhecido em Gramado no ano passado, onde recebeu 3 Kikitos, incluindo melhor ator coadjuvante para Otávio Muller, e atriz a Mariana Ximenes, que aliás foi produtora também do longa.
Arnaldo (Vladimir Brichta) está cansado de sua vida cotidiana, e consequentemente seu casamento, tão mecanizado quanto o sexo imposto por sua mulher (Ingrid Guimarães) para engravidar. Até o momento em que numa escuta de conversa entre os amigos de trabalho, ouve falar de um tratamento em laboratório que duplica o ser humano, e dá liberdade ao original de viver experiências fora de sua vida, enquanto “o duplo” cumpre o papel social.
Em seu caminho esbarra com a excêntrica Josie (Ximenes), uma garota que trabalha em um cemitério de animais que parece ser o caos que Arnaldo precisa em sua vida. Não dá para negar a colagem inicial da personagem de Ximenes com Clementina, a garota “hipster” de ‘Brilho Eterno’. Com seus fortes cabelos vermelhos, e a canção tema dos dois, composta por Rodrigo Amarante, ‘Ribbon’ de seu disco ‘Cavalo’, que dá beleza a proposta do filme, sentimos a vida no entorno da relação dos dois, tanto pelo contraste de cores vivas, como pela música. O próprio Amarante compôs a obra em um momento onde queria se encontrar como artista solo, pós-saída do Los Hermanos, o que faz todo sentido para colocá-la como tema do casal.
Não é um filme perfeito por tentar direcionar a narrativa para vários lugares, o que deixa o curto tempo do filme insuficiente para dilacerar tudo, como as questões da morte e as consequências de nosso egoísmo.
Vladimir surpreende com uma atuação contida, e que oscila bem entre humor e drama, e mostra bastante desenvoltura para trabalhar em cima da digitalização de seu rosto para contracenar com seu dublê. Aliás outro ponto positivo do filme está nos efeitos visuais, pois também é a estreia da produtora Giros como ficção. O filme em si não é pretensioso, pois acaba caindo em uma narrativa de ação e entretenimento, mas vale por ter personalidade em uma época em que o cinema nacional tenta abandonar velhos dogmas de linguagem. Bom filme.
Assista à entrevista que fizemos com os atores Mariana Ximenes e Vladimir Brichta e com a diretora Claudia Jouvin: