Dos anos 80 até a primeira metade da década de 90, o cinema britânico passou por uma “revolução” a ponto de elevar a produção cinematográfica do país a um nível internacional, pois os grandes cineastas do país até então, como Kubrick ou Hitchcock haviam concebido seus principais sucessos nos EUA. Filmes como “Carruagens de Fogo” (1981) e “Gandhi” (1982) foram super produções que agradaram crítica e público, arrematando prêmios ao redor do mundo e fazendo o cinema britânico ser levado a sério, e o mundo ver com outros olhos as produções interessantes realizadas naquele polo. Socioeconomicamente falando, a situação da nação ia “mal das pernas”, e através do cinema, toda questão política e social obscura do país foi satisfatoriamente abordada, em filmes como “Em Defesa da Verdade” (1985) e “Sid e Nancy” (1986), por exemplo.
Entretanto, duas coisas no cinema britânico nunca mudaram: o peculiar humor inglês, de “Monty Phyton” a “Um Peixe Chamado Wanda” (1988) e, é claro, a franquia “James Bond”. Sendo assim, durante a segunda metade da década de 90, nomes talentosos e inovadores sentiram a segurança necessária para abordar temas mais polêmicos de forma mais irreverente. Depois de um sarcástico “Cova Rasa” (1994), Danny Boyle conceberia o humor negro de “Trainspotting” (1996) de uma forma tão sensacional que o filme seria indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Já outro diretor, Guy Ritchie, trouxe de volta os filmes gângsters com uma nova “cara”, aliando a criminalidade das ruas britânicas “pós punk” com um humor negro cruel e engraçadíssimo. Do resultado de tudo isso, surgiram os maravilhosos “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998) e “Snatch – Porcos e Diamantes” (2000).
Nestes dois últimos filmes citados, havia um produtor que compartilhava do mesmo gosto pelo humor negro e violência desses filmes. Ao se tornar um diretor poucos anos depois, Matthew Vaughn levou muito do que aprendeu com os “ousados” novos diretores britânicos e adotou como estilo, empregando nos seus filmes. No primeiro deles, “Nem Tudo é o Que Parece” (2004), vemos visivelmente que drogas, violência, criminalidade e personagens de caráter ambíguos seriam uma marca registrada que o acompanharia durante toda a sua carreira. Depois do sucesso de seu filme de estreia, Vaughn foi para Hollywood, onde dirigiu três outros grandes sucessos: “Stardust” (2007), “Kick-Ass” (2010) e “X-Men: Primeira Classe” (2011). De volta ao Reino Unido, o diretor/roteirista apresenta um filme que visualmente lembra bastante Kick-Ass, entretanto, adaptado livremente de uma HQ de Mark Millar, deixa a figura do super-herói (um conceito mais americano ou asiático) de lado, para nos levar a Londres e ao Serviço Secreto Kingsman, bem ao estilo James Bond (existe algo mais britânico do que o James Bond original?).
Kingsman: Serviço Secreto conta a história de um garoto rebelde e pobre dos subúrbios de Londres – apresentando o surpreendente bom Taron Egerton – chamado Gary “Eggsy” Unwin (que pode soar como “impossível de vencer”, acentuando como o garoto parece ter nascido para se dar mal na vida), que é recrutado pelo “Kingsman” para uma espécie de academia de testes, competindo com outros jovens por apenas uma vaga disponível para fazer parte do serviço secreto. Sempre há um vilão, antigamente a ideia era aquele cara esquisito que queria destruir o mundo, hoje temos o mesmo cara esquisito, só que ao invés de destruir o mundo, diz que quer salvá-lo, adivinhem como… destruindo-o!
Vaughn reúne todos aqueles elementos mencionados no início do texto com um filme bem dinâmico. Não é inovador, mas preenche uma “lacuna” deixada pelo próprio Kick-Ass original, já que o segundo não obteve o mesmo sucesso. Violência gratuita pode até agradar em certa cena do filme, mas é facilmente esquecida depois de um tempo junto com o próprio filme e não conquista o espectador. Já a violência “estilizada” (mesmo a gráfica ou de “mau gosto”) habilmente colocada dentro de um contexto apropriado se consagra na cultura pop. Peguem como exemplo filmes como “Kill Bill” (2003), “Tucker e Dale Contra o Mal” (2010), “Madrugada dos Mortos” (2004) ou “300” (2006). É tudo questão de estilo. E esse ritmo dinâmico amplifica no público a sensação de excitação e empolgação.
Falando agora sobre os personagens, Colin Firth está perfeito como Harry Hart, um dos líderes da Kingsman. O ator, que já é naturalmente um gentleman inglês, está bastante convincente e perigoso no papel, um alívio muito interessante para a sua carreira de papéis tão sérios. No lado oposto “da força”, Samuel L. Jackson como Valentine, um super nerd que inventou um meio de fazer uma “seleção populacional” para, segundo o que ele acredita, salvar o planeta das pessoas que estão acabando com o mundo um pouquinho de cada vez. Samuel também está perfeito, com um sotaque engraçado e o fato de ser um criminoso que quer um genocídio, mas tem nojo de sangue! Me fez recordar um antigo papel seu como Elijah Price no filme “Corpo Fechado” (2000), onde ele interpreta também um nerd alienado com o tema “heróis/vilões”. Já elogiei o promissor Taron Egerton, indo muito bem no seu primeiro papel principal e Mark Strong, Michael Caine e todo o elenco de apoio estão bem também.
Diante de tudo que foi dito aqui, o veredito é que Kingsman: Serviço Secreto é um filme muito bom, despretensioso, embora não inovador e ousado, ainda sim tem momentos que realmente enchem os olhos – como a cena da igreja ao som do solo de “Free Bird” de Collins e Rossington da banda Lynyrd Skynyrd, que me lembrou muito uma das cenas do ótimo “Todo Mundo Quase Morto” (2004). Um grande aquecimento para os próximos blockbusters deste ano, com direito a mais um filme de James Bond que vem por aí. Em tempos de espiões cada vez mais sérios e verossímeis, Kingsman traz de volta a fantasia, aventura, ação e violência, cheias de gadgets, ótimos efeitos visuais e humor negro, tudo isso sem perder o charme britânico. E aguardaremos possíveis continuações, já que podemos ter aqui o início de uma ótima franquia.
Trailer do filme: