“Retrato de Uma Jovem em Chamas” explora a beleza dos amores perdidos

Em Retrato de uma Jovem em Chamas (dir. Céline Sciamma) o amor é uma tela borrada. Em meados do século XVIII numa França ora ensolarada, ora chuvosa, Marianne (Noémie Merlant), uma talentosa pintora, é contratada por uma condessa (Valeria Golino) para fazer um retrato de sua filha, Héloïse (Adèle Haenel). Há, no entanto, um detalhe: este retrato será dado ao futuro marido de Héloïse, com o qual ela não quer se casar, afinal trata-se de um casamento arranjado e, por causa disso, recusa-se a posar para Marianne. É dever dela, portanto, pintá-la sem seu conhecimento, seja sob o disfarce de ‘acompanhante’, seja inventando pequenas mentiras.

A relação entre as duas protagonistas se estreita durante caminhadas nos campos e na praia, em que Héloïse revela para Marianne, sua suposta acompanhante, seus conflitos internos, sua insatisfação com o futuro noivo, que não conhece, sua certa nostalgia pelo convento, onde podia ler, escutar música e conviver com outras mulheres e sua raiva pela irmã mais velha que se suicidou para evitar o mesmo casamento, agora herdado por ela. Marianne, por sua vez, tem um olhar atento e vívido para cada detalhe do rosto, das orelhas, das mãos e do sorriso de Héloïse, construindo seu corpo em sua mente para, em seguida, transportá-lo para a tela, ao mesmo tempo que a aconselha e tenta entender sua falta de liberdade. A empatia de Marianne com o dilema que Héloïse enfrenta e sua capacidade de impressioná-la com sua música e seu desenho fazem com que cresça a intimidade entre ambas.

Duas locações se destacam no filme: o quarto-sala em que Marianne se hospeda, claro à tarde, período em que deve caminhar com Héloïse, e escuro à noite, o momento que resta para pintá-la, e a praia, situada após uma falésia, onde a irmã de Heloise suicidou-se. Por causa da diferença física e emocional entre os lugares, há uma diferença nos planos adotados. Na praia são utilizados planos abertos, priorizando a paisagem, as cores, o movimento no espaço das personagens e do mar, enquanto na casa há muitos close-ups e planos detalhe, destacando os gestos, os olhares e as pequenas ações.

Tanto Noémie Merlant quanto Adèle Haenel transmitem muita sobriedade em suas atuações. Os gestos de Marianne enquanto pinta e anda pelo seu quarto, seus olhares atentos e vívidos para o corpo de Héloïse, seus diálogos com Sophie (Luàna Bajrami), a empregada, são cheios de vida e de sentido e interagem muito bem com a personagem mais contida de Héloïse. As interações entre as três, especialmente no período em que a condessa viaja, são muito sensíveis e profundas, como na cena em que debatem o mito de Orfeu e Héloïse defende que sua escolha de se virar e olhar para Eurídice foi poética, não racional. Esses momentos mostram explicitamente que a diretora Céline Sciamma sabe o que, como e por que quer falar, construindo um filme sutilmente universal. É também interessante notar como o filme trabalha com contrastes visuais e semânticos: loiro/moreno, azul/verde/vermelho, fogo/água, vida/morte, liberdade/opressão, poesia/prosa. Esteticamente este é um filme muito contemplativo, como o olhar a uma fogueira prestes a se apagar, ainda com suas brasas acesas e a lenha estalando.

O fogo, na realidade, é a essência da narrativa. É ele que une todas as personagens. Amor, desejo, incerteza, raiva, paixão, ambição, medo, tudo é fogo. O retrato de uma jovem em chamas pode se referir tanto à Heloïse, retratada em um quadro, quanto à Marianne, retratada em um filme. O amor a que o filme diz respeito e é a linha central da trama é aquele com data de validade. Assim que Marianne terminar o quadro, deve ir embora. E, por mais que tente adiar isso, ela ainda é (literalmente) assombrada pelo terror da despedida, pela inevitabilidade do casamento de Heloïse.

Este filme não precisou de uma reviravolta nos padrões heteronormativos para concluir seu argumento porque não se trata de um filme infantil ou anacrônico que propõe uma resposta rasa e trivial. Ele funciona mais para reconhecer as pequenas faíscas de subversão, que aos poucos formam uma grande chama e para entender o sentimento de perda de um amor, que é um sentimento universal. Em diversos aspectos esta é uma obra muito relacionável com Me Chame Pelo Seu Nome (2017, dir. Luca Guadagnino), no entanto Retrato de Uma Jovem em Chamas tende a ser menos uma história de amor que uma história do amor. O sentimento catártico que é expresso por Héloïse na cena final é global, enquanto o de Elio é local. A diretora está preocupada no espaço entre o “querer” o primeiro romance e o “perder” e em entender como nossas primeiras relações nos moldam como pessoas. E trabalha majestosamente com tudo isso. Assim como um quadro não terminado ou borrado ainda é um quadro, um amor distante, passado, perdido, ainda é amor. Resta saber se deve ser guardado ou deixado para as chamas.

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