Garra de Ferro

“Garra de Ferro” tem como pano de fundo um universo pouco conhecido no Brasil: a luta livre. Nos EUA, a modalidade que mistura luta com performance tem uma audiência enorme através do WWE, a maior liga dessa modalidade no mundo. A família Von Erich foi uma das precursoras desses eventos como eles existem hoje. O patriarca da família, Fritz Von Erich, começou sua carreira ainda jovem, virou uma lenda com o seu “golpe” assinatura, a Garra de Ferro, e iniciou seus 4 filhos no esporte para levar adiante o legado da família. O que poderia ser apenas um drama familiar, ou uma história de esporte acabou tendo uma jornada trágica e inesperada, envolvendo brigas, traumas e mortes. 

O filme começa com Fritz já aposentado, vivendo com sua esposa Doris (Maura Tierney) e com 3 de seus 5 filhos (na vida real eram 6 filhos, mas o mais novo não faz parte do filme), isso porque um deles faleceu quando ainda era criança e o outro está treinando fora de casa para se tornar um atleta olímpico. A família mora numa fazenda e o pai divide suas horas entre o trabalho, relembrar seus tempos de glória na luta livre e treinar (cobrar) seus filhos. O primeiro filho é Kevin (Zac Efron) e ele sente o peso de ser o mais velho, tomando para si a responsabilidade de levar adiante o legado do pai ao mesmo tempo em que serve como uma ponte entre o pai ríspido e os irmãos mais sensíveis, principalmente Mike (Stanley Simons), o mais novo e menos interessado na luta. Quando os jogos olímpicos em que Kerry (Jeremy Allen White) participaria são cancelados e ele volta para casa, se tornando o novo favorito do pai (que não faz nenhuma questão de esconder seu ranking dos filhos), a dinâmica da família começa a mudar, e se complicar até culminar em tragédias anunciadas, mas ainda assim inimagináveis.

“Garra de Ferro” é uma história de contradições, assim como tantas histórias familiares são. Os irmãos são extremamente unidos, a família toda é muito próxima, eles moram juntos, trabalham juntos, treinam juntos. O senso de responsabilidade de Kevin com a família é tão grande que mesmo no auge dos seus 20 e poucos anos, fazendo sucesso como lutador, só se relacionou com uma mulher pela primeira vez depois de conhecer Pam (Lily Jones), com quem acabou se casando. Não há dúvidas de que eles se importam e cuidam um do outro, mas até mesmo essa proximidade entre os irmãos surgiu como uma proteção deles contra o pai. De longe, Fritz poderia parecer apenas mais um paz exigente com problemas de comunicação, mas ao longo do filme, suas micro agressões vão se tornando cada vez mais evidentes e intercalam entre agressões físicas e emocionais. Fritz constantemente coloca os irmãos um contra o outro, apesar de sempre pregar pelo amor fraternal, e se aproveita da desculpa do “legado da família” para viver, através dos filhos, seus dias de glória que ficaram para trás. A somatória desses maus tratos e abusos durante toda a infância até a vida adulta dos irmãos, é uma sequência de tragédias horríveis, que colocam à prova toda a família, ainda mais Kevin.

Ao contar uma história real com tantos momentos carregados de drama, melodrama e com tão poucos momentos de felicidade, seria de extrema facilidade cair num filme pautado em tristeza e fatalidades, denso e pesado, mas Sean Durkin, que não só dirigiu, mas também escreveu o roteiro, escolhe um caminho muito mais realista e menos exagerado. Ele consegue explorar o comportamento do pai, e também da mãe, com todas suas camadas e erros, sem torná-los monstros caricatos. Por pior que seja seu comportamento, essa honestidade em retratar Fritz e o relacionamento com a luta, com a própria carreira e com os filhos nos permite observá-lo, acima de tudo, como ser humano. Da mesma forma, Kevin, numa performance memorável que coloca Zac Efron num novo patamar (e que deveria ter sido notada pelo Oscar), é apresentado com muita clareza e sensibilidade, sem se transformar num super-herói. 

“Garra de Ferro” é um filme sobre uma das principais famílias da luta livre mundial, mas é, primordialmente, um filme sobre família, as relações complicadas entre seus membros, os perigos de limitar seu mundo a uma coisa só, a dificuldade de se desvencilhar daquilo que lhe é imposto como destino (ou como maldição) e o poder da influência dos pais (ou da falta dela) na vida de seus filhos. Não é uma história fácil de se assistir, sobretudo por ser baseada em eventos reais, mas isso em nada muda o fato de que é um filme envolvente, extremamente forte, com atuações impressionantes e com o potencial de deixar uma grande marca em seus espectadores.

Por Júlia Rezende