O cinema já chegou aos seus longínquos 120 anos e desde os primórdios procurou refletir acerca da sociedade a partir de mensagens ou críticas. E com a religião não poderia ser diferente. O cinema procurou passar ao público relatos do evangelho, histórias de santos, temas que atingem o grande público.
Apesar da diversidade, os Estados Unidos têm o cristianismo como a religião mais seguida no país, seguida por um grande número de protestantes. O cinema procurou sempre inserir essa fração da população como público alvo. Mas de formas diferentes conforme o tempo.
Nos anos 20, os Estados Unidos estavam passando por uma grande euforia econômica e cultural, devido a Primeira Grande Guerra, e muito se refletiu no cinema, que neste período já era uma grande potência. Principalmente pelo fato de as produtoras serem donas dos próprios cinemas. O diretor Frank Capra marcou a década de 30 com seu longa ‘A Mulher Miraculosa’ (1931), que conta a história de Florence, uma mulher desiludida com a religião após a igreja não dar nenhum apoio diante da doença de seu pai, que era pregador. Florence passa a fingir ser capaz de operar milagres e prega para as pessoas como se tivesse alguma fé. Tudo muda quando um homem, que alega ser cego, é curado por ela.
Pelo fato de às décadas de 20 e 30 serem um período de euforia, escândalos e polêmicas envolvendo artistas começaram a ser divulgados. Com isso, a igreja, tanto católica quanto protestante, começou a agir. Em 1934, movimentos exigindo uma auto-regulamentação na indústria foram organizados por cristãos, católicos e protestantes. Os movimentos exigiam moralidade e determinados padrões para os filmes, acabando com o universo “libidinoso” da época. Com a auto-regulamentação e o fim da “união” entre as produtoras e os cinemas, épicos bíblicos começaram a ser produzidos, nascendo os maiores clássicos de cunho religioso do cinema.
‘Ben-Hur’ (1959) se tornou o maior de todos, conseguindo atingir uma gama maior de público e arrecadando uma vasta bilheteria. ‘Ben-Hur’ utiliza a presença de um personagem fictício em um contexto histórico, com isso, conseguia conversar tanto com o cristão quanto com o ateu, já que não trata de uma premissa religiosa. ‘Os Dez Mandamentos’ (1956) também deixou sua marca na história e foi a prova determinante da influência da igreja no cinema. Em 1923, antes dos movimentos, a primeira versão dirigida de ‘Os Dez Mandamentos’, também dirigida por Cecil B. DeMille, trazia uma orgia espalhafatosa, enquanto na versão de 56, após a auto-regulamentação, DeMille se conteve com uma orgia mais leve.
Com ‘Os Dez Mandamentos’, o cineasta se tornou um dos principais nomes dos espetáculos cinematográficos de cunho religioso e marcou uma época. O diretor era consciente de todas as polemicas em Hollywood e ele mesmo não admitia determinadas atitudes dos atores e equipe técnica. “A Bíblia sempre foi um best-seller ao longo dos séculos. Por que iria eu desperdiçar dois mil anos de publicidade gratuita? ”, disse o diretor. A prova de que seus filmes se tornaram um marco religioso veio através de um padre, que confessou ao ator H. B. Warner, que interpretou Jesus Cristo em ‘Reis dos Reis’ (1927): “Vi o senhor no filme quando eu era criança. Hoje, toda vez que penso em Jesus, é o seu rosto que encontro”.
Na Itália, após o fim da Segunda Guerra Mundial e com a produção do longa ‘Roma, Cidade Aberta’ (1945) nasce o Neorrealismo Italiano, um movimento cultural expressado, em sua maioria, no cinema. Os filmes neorrealistas eram marcados por utilizarem elementos da realidade dentro de uma ficção, aproximando-se de um documentário. Diferenciando do cinema tradicional. O neorrealismo italiano procurou representar a realidade social e econômica da época. De Sica, Fellini, Antonioni, Visconti e Rosselini foram os principais nomes do movimento e nenhum dos cinco adotou um cunho religioso, pelo contrário, consideravam a religião católica um atraso de vida.
Nas obras neorrealistas, a religião era tratada tanto com desprezo quanto com deboche, ou até como um reflexo do atraso social. Todos os valores da fé e os sagrados princípios religiosos não eram considerados, devido a isso, a igreja boicotava as grandes produções do movimento, classificando-as de amorais.
A década de 50 foi marcada por grandes filmes de cunho religioso, indo do drama ao suspense, de DeMille a Hitchcock, e sempre com uma premissa cristã ou católica. Devido a força da igreja, Hollywood pouco explorou a crítica religiosa, procurando sempre um filme fiel a tais valores. Mas isso foi mudando com o tempo através de produções que se distanciavam do cristianismo, como ‘O Gato do Rabino’ (2011), que trata dos fundamentos judaicos e ‘As Aventuras de Pi’ (2012) que passeia por várias religiões e as apresenta através metáforas. A evolução possibilitou a apresentação de outras religiões e culturas no cinema, abrindo portas para outros mercados também, mesmo com – a ainda forte – predominância cristã.
Tratando-se de choque e divisor de águas vem ‘A Paixão de Cristo’ (2004). Com as críticas positivas à direção, trilha sonora, atuação, fotografia, vieram as críticas negativas à violência exagerada e o nível “tarantinesco” de sangue. O longa arrecadou mais de US$ 600 milhões mundialmente, mesmo com censuras em inúmeros países, como a Malásia. Devido à alta violência explicita, em 2005, uma versão editada foi distribuída aos cinemas e ‘A Paixão de Cristo’ é o filme restrito de maior bilheteria na história dos Estados Unidos. O diretor Mel Gibson utilizou as quatro narrativas canônicas do Evangelho da Paixão de Cristo como fonte primária, além de outras partes do Novo Testamento. Existe referência ao Tanakh também, com uma epígrafe da quarta canção do Servo Sofredor de Isaías. Apesar de uma produção um tanto quanto restrita a Hollywood, o filme tem grande potencial bíblico e pode ser visto como um dos últimos filmes do gênero que procuram representar de forma impactante a história bíblica.
O humor e à sátira também são recorrentes no cinema religioso. Muitos cineastas já se declararam ateus e a enxergam a religião como um fator de alienação ou simplesmente não conseguem acreditar em dogmas. Essa falta de crença ou desprezo pela religião é transformada em humor no cinema. O diretor e roteirista Kevin Smith pode não ter ficado 100% satisfeito com o resultado de ‘Dogma’ (1999), já que sofreu duas ameaças de morte e protestos contra o filme. ‘Dogma’ é o quarto filme do universo View Askew, criado por ele, e que conta a história de Bartleby (Ben Affleck) e Loki (Matt Damon), dois anjos que foram banidos do paraíso por Deus e ficaram exilados em Wisconsin. Os dois descobrem uma chance de salvação se passarem pela porta de uma igreja, quando seus pecados serão perdoados. Mas se fizerem isso, provarão que Deus não é infalível e toda a existência poderá ser destruída. Inicia-se então uma dupla conspiração, vinda do céu e de parte do inferno. Redes de cinema no Brasil recusaram-se a exibir o longa, além de um grupo religioso protestar durante a estreia em Nova York. A atriz Salma Hayek exigiu que sua imagem fosse excluída do cartaz após o lançamento em DVD.
Kevin Smith não foi o único que aproveitou para satirizar crenças religiosas. ‘O Primeiro Mentiroso’ (2009) e ‘Habemus Papam’ (2011) também apresentam uma proposta humorística do assunto e cutucam ainda mais a ferida dos religiosos. O longa de 2009, estrelado por Rick Gervais apresenta uma sociedade onde não existe mentira e as pessoas são tão diretas e verdadeiras que expressam sem medo seus preconceitos e intolerâncias. Diante uma situação complicada da vida, o personagem de Rick se vê em uma situação delicada e precisa mentir para se beneficiar e seguir bem na vida, tornando-se o primeiro mentiroso. Uma alusão lógica a queda de Adão pela maçã, que perde sua ingenuidade, caindo nas graças da mentira. Mas com um porém, diferente da pregação religiosa, o personagem de Rick é beneficiado, ao invés de punido.
Seu personagem enxerga a oportunidade de criar uma religião com base em suas mentiras, e com o tempo acrescenta a racionalização. No leito de morte da mãe no hospital, seu personagem, Mark, mente ao dizer que ela vai para um paraíso maravilhoso, onde todos têm uma mansão e lá encontrará seus entes queridos. Os médicos ouvem e espalham a notícia. Logo dezenas de repórteres estão atrás dele para que explique melhor o que há depois da morte. Cria-se uma comoção mundial e centenas de pessoas param a sua porta à espera de uma resposta. Para aumentar sua mentira, Mark, igual a Moisés, cria os mandamentos de sua nova religião e as escreve em caixas de Pizza Hut e a partir das revelações de Mark, tudo passa a ganhar sentido para a população, que o homenageia com sua imagem segurando as caixas de pizza em vitrais de igreja. Nada como uma explícita e divertidíssima crítica a religião.
O cinema brasileiro não poderia ser descartado quando o assunto é religião. Com grandes obras cinematográficas, o brasileiro também teve seus momentos de cunho religioso, e o curioso, é que em um país predominantemente católico, tivemos filmes, de grande sucesso, tratando de outras visões religiosas. Como é o caso de ‘Nosso Lar’ (2010), filme espírita que adapta a obra do médium Chico Xavier, que levou milhares de brasileiros ao cinema. ‘O Pagador de Promessas’ (1962), um dos mais importantes filmes nacionais – vencedor da Palma de Ouro, de Cannes -, trata de uma crítica ao sistema católico e utiliza do candomblé como uma religião defensora dos direitos. Em 2015, o filme ‘Metanoia’ procurou se distanciar cada vez mais desse “impulsionismo” católico que o cinema brasileiro impôs com obras do Padre Marcelo Rossi, mostrando um viciado em crack procurando salvação no sistema evangélico.
O mercado cinematográfico religioso brasileiro tem grande foco no regime católico e com isso procura impulsionar seus dogmas e pensamentos, apesar da existência da sobreposição católica.
Em Hollywood, a situação está mudando cada vez mais. Com a estreia de ‘Noé’ (2014) e ‘Êxodo: Deuses e Reis’ (2014) temos visões mais “realistas” às histórias bíblicas. Os diretores, declaradamente ateus, tentam apresentar visões diferentes das histórias impostas pelas religiões e, deixando de lado a qualidade ou não dos filmes, as duas obras já demonstram que os épicos bíblicos já não existem mais, e histórias de cunho religioso estão sendo exploradas de outra maneira através de grandes produções.
Como toda moeda tem dois lados, não é apenas o cinema crítica a religião, aliás, vemos que o contrário é mais comum. Uma prova próxima ao brasileiro é o jornalista, escritor e adventista Michelson Borges, que com seu canal no Youtube procura passar sua palavra ao povo, e muitas de suas palavras remetem ao cinema e o quanto ele está afastando as pessoas da “verdadeira religião”. Em seu vídeo/palestra ‘Os Novos Deuses: Como Hollywood está Desconstruindo a Religião da Bíblia’, Michelson apresenta seus argumentos a partir dos novos filmes de super-heróis, os chamados “novos deuses”. Em sua concepção, super-heróis estão fazendo grande sucesso e afastando cada vez mais a população das religiões, onde Superman e Batman, por exemplo, tomaram o lugar de Jesus Cristo e Deus. O adventista utiliza trechos e títulos de HQs para representar sua indignação. Não só com HQs e filmes de heróis, o adventista apresenta filmes, que trazem em sua proposta temas religiosos, mas que na verdade, querem apresentar uma realidade distorcida daquela que está na bíblia.
Michelson também afirma que em 1998, 41% da população americana ia a cultos religiosos, enquanto apenas 2% de Hollywood frequentava os cultos, afirmando, com suas concepções, que Hollywood teria essa função de afastar o espectador de suas religiões e que a doutrina hollywoodiana está impulsionando o secularismo, espiritismo e evolucionismo, citando obras como ‘Ghost: O Outro Lado da Vida’ (1990) e a série ‘Supernatural’. Michelson também cita os X-Men e que os mutantes são o próximo passo da evolução humana, trazendo e criticando a ideia do evolucionismo, já que eles são o que ele chama de “homo superior”. Ele cita que os estilo de vida, apresentado pelos filmes, são banhados por desregramento, hedonismo, intemperança e homossexualismo, dizendo que o conteúdo apresentado influencia as pessoas a acreditarem que algo que é errado, deve ser considerado normal. De acordo com ele, filmes com invasões alienígenas e filmes catástrofes são resolvidas pela mão humana e não pela mão divina, como podemos ver em ‘2012’ (2009) e ‘Independence Day’ (1996), tornando-nos independente de Deus.
Em seu vídeo ‘Desenhos animados a serviço da mentira’, Michelson diz: “Não é de hoje que as produções hollywoodianas, muitas das quais para crianças, vem enaltecendo e divulgando o espiritualismo com a crença na alma imortal e o evolucionismo com consequente natural desprezo pelo sábado da criação. Essas ideologias compõe as duas principais facetas na grande mentira satânica gestado no Éden e amplificada a enésima potência em nossos dias. Ambas pregam a independência de Deus e uma suposta evolução espiritual e biológica independente de uma divindade superior”. E finaliza: “No amago da mentira satânica estão a independência de Deus e as pretensas soluções humanas a justificação das obras”.
É possível observar que cinema e religião conversam bastante, mas nem sempre falam a mesma língua. Aliás, já parou para pensar que ir ao cinema é igual a ir à igreja? Existe um ritual para ir, colocamos boas roupas, nos programamos, o dizimo é igual ao ingresso, existe a reunião de diferentes pessoas em um mesmo local, há o contato com ideologias e doutrinas, manipulação das emoções e, por fim, a satisfação do desejo de adoração (os ídolos). Parecidos, não? Outra ideia apresentada por Michelson e citada acima é a manipulação que o cinema tem sobre o ser humano, que consiste desde o apagar das luzes até o som alto, deixando o espectador imerso no universo e sem capacidade de autocontrole.
Independente de sua crença, o cinema é uma indústria, que busca lucro e público, cada vez mais. Na religião, muitas vezes, não é muito diferente. Os dois caminharão sempre juntos, não só o cinema, como a propaganda, o teatro e qualquer mídia. Sempre estarão unidos, seja por contraste ou por fidelidade a obra, os dois caminharão sempre de mãos dadas, pois não passam de empresas a procura de um público que acredite em suas ideias e compre seus produtos. Formar opinião própria e seguir o que acredita é a mensagem que realmente importa, e no final, é necessário sempre se lembrar, que tanto religião quanto cinema, não passam de uma complexa ficção.